Os efeitos da Graça – IIIª parte

No artigo anterior nós vimos as situações onde foi usada a palavra graça seja no Antigo como Novo Testamento, debruçamo-nos agora sobre os efeitos da graça. Ao descrever os efeitos do divino favorecimento, a Escritura fala primeiramente dos exteriores e gerais efeitos, mas à medida que o tempo passa descreve o penetrar de forma expansiva, com particular efeitos, a alma do homem. O Antigo Testamento inicialmente apresenta o favorecimento de serem o povo escolhido de Deus, que vive na hesed ligada a YHWH, desde a Aliança: «Moisés pegou, então, o sangue, aspergiu com ele o povo e disse: “Este é o sangue da aliança que o Senhor fez convosco, referente a todas estas cláusulas”» (Ex 24,8). Relembramos que o aspergir do sangue significa o aspergir da vida pois sangue é vida: «Porque a vida de um ser vivo está no sangue, e eu vos mandei pôr o sangue sobre o altar para expiar por vossas vidas, pois é o sangue que faz a expiação pela vida» (Lev 17,11). Na verdade, Deus se liga ao seu povo tal como os parentes estão ligados entre si através do sangue e também como go’el (redentor) que está comprometido na Aliança para salvar o povo das suas debilidades. Neste contexto nós vemos o Antigo Testamento a ver os efeitos do favor divino. A palavra mais geral é a berakâ (bênção) pela qual o homem recebe alegria, força, plenitude de vida e uma especial relação com Deus. Eventualmente podemos encontrar o sentido de sabedoria que torna a pessoa espiritualmente perfeita.

Nos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) káris apenas aparece em Lucas, por oito vezes, mas sempre com um significado muito semelhante ao Antigo Testamento. A imagem da graça, aparece então nos Sinóticos de seguinte forma:

  1. Deus que convida o homem a pertencer ao seu Reino: «Jesus voltou a falar em parábolas aos sumos sacerdotes e aos anciãos do povo, dizendo: “O Reino dos Céus é como um rei que preparou a festa de casamento do seu filho. Mandou seus servos chamar os convidados para a festa, mas estes não quiseram vir. Mandou então outros servos, com esta ordem: ‘Dizei aos convidados: já preparei o banquete, os bois e os animais cevados já foram abatidos e tudo está pronto. Vinde para a festa!’ Mas os convidados não deram a menor atenção: um foi para seu campo, outro para seus negócios, outros agarraram os servos, bateram neles e os mataram. O rei ficou irritado e mandou suas tropas matar aqueles assassinos e incendiar a cidade deles. Em seguida, disse aos servos: ‘A festa de casamento está pronta, mas os convidados não foram dignos dela. Portanto, ide às encruzilhadas dos caminhos e convidai para a festa todos os que encontrardes’. Os servos saíram pelos caminhos e reuniram todos os que encontraram, maus e bons. E a sala da festa ficou cheia de convidados. Quando o rei entrou para ver os convidados, observou um homem que não estava em traje de festa e perguntou-lhe: ‘Meu caro, como entraste aqui sem o traje de festa?’ Mas o homem ficou sem responder. Então o rei disse aos que serviam: ‘Amarrai os pés e as mãos desse homem e lançai-o fora, nas trevas! Ali haverá choro e ranger de dentes’. Pois muitos são chamados, mas poucos são escolhidos”» (Mt 22,1-14)
  2. O convite à Nova Aliança: «pois este é o meu sangue da nova aliança, que é derramado em favor de muitos, para remissão dos pecados» (Mt 26,28)
  3. A pertença a Deus enquanto crianças: «Vós, portanto, orai assim: Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, como no céu, assim também na terra» (Mt 6,9-10);
  4. A necessidade de imitar Deus: «Sede, portanto, perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito» (Mt 5,48)
  5. E a promessa de dar muito fruto: «Assim, toda árvore boa produz frutos bons, e toda árvore má produz frutos maus» (Mt 7,17); «Ajuntou-se uma grande multidão, e de todas as cidades iam até Jesus. Ele, então, contou uma parábola: “O semeador saiu a semear. Ao semear, uma parte da semente caiu à beira do caminho e foi pisada; e os pássaros do céu a comeram. Outra parte caiu sobre as pedras; brotou, mas secou, por falta de umidade. Outra parte caiu entre os espinhos e, crescendo ao mesmo tempo, os espinhos a sufocaram. Ainda outra parte caiu em terra boa; brotou e deu frutos, até cem por um”. Depois de dizer isso, ele exclamou: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!” Seus discípulos faziam perguntas sobre o sentido da parábola. Jesus, então, lhes disse: “A vós foi dado conhecer os mistérios do Reino de Deus. Aos outros, porém, só por meio de parábolas, de modo que, olhando, não enxergam e, ouvindo, não entendem. A parábola quer dizer o seguinte: a semente é a Palavra de Deus. Os que caem à beira do caminho são os que escutam, mas logo vem o Diabo e arranca a palavra do seu coração, para que não acreditem e não se salvem. Os que ficam sobre as pedras são os que ouvem e acolhem a palavra com alegria, mas não têm raízes. Por um momento, acreditam, mas quando chega a tentação, desistem. Aquilo que caiu entre os espinhos são os que escutam, mas vivendo em meio às preocupações, as riquezas e os prazeres da vida, são sufocados e não chegam a amadurecer. O que caiu em terra boa são aqueles que, ouvindo com um coração bom e generoso, conservam a Palavra e dão fruto pela perseverança» (Lc 8,4-15).

Quando percorremos as cartas não-paulinas, portanto Tiago, Judas e Pedro vemos a preponderância da visão veterotestamentária que descreve os efeitos da graça interior do homem como lei e como sabedoria. Algumas noções estão presentes nas cartas de Pedro que fala dos efeitos da graça como:

  1. Salvação: «Esta salvação tem sido objeto das investigações e meditações dos profetas. Eles profetizaram a respeito da graça que estava destinada para vós» (1 Ped 1,10);
  2. Luz : «Mas vós sois a gente escolhida, o sacerdócio régio, a nação santa, o povo que ele adquiriu, a fim de que proclameis os grandes feitos daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa» (1 Ped 2,9);
  3. Santificação: «eleitos conforme a presciência de Deus Pai e pela santificação do Espírito, para obedecerem a Jesus Cristo e serem aspergidos com o seu sangue: a vós, graça e paz em abundância» (1 Ped 1,2);
  4. Imitação da santidade Daquele que chama a si os fiéis: «Antes, como é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos, também vós, em todo o vosso proceder. Pois está escrito: “Sereis santos porque eu sou santo”» (1 Ped 15-16);
  5. Renascer: «Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Em sua grande misericórdia, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, ele nos fez nascer de novo para uma esperança viva» (1 Ped 1,3);
  6. Participação na natureza divina já na presente vida: «Por elas foram-nos concedidos os bens prometidos, os maiores e mais valiosos, a fim de que vos tornásseis participantes da natureza divina, fugindo da corrupção que a concupiscência espalha no mundo» (2 Ped 1,4);

Os escritos joânicos falam dos efeitos da graça como luz e verdade mas também como:

  1. Passagem da morte à vida: «Em verdade, em verdade, vos digo: quem escuta a minha palavra e crê naquele que me enviou possui a vida eterna e não vai a julgamento, mas passou da morte para a vida» (Jo 5,24); «Sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama permanece na morte» (1 Jo 3,14);
  2. Partilha abundante da vida de Cristo: «O ladrão vem só para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância» (Jo 10,10)
  3. Renascimento no Espírito: «Jesus respondeu: “Em verdade, em verdade, te digo: se alguém não nascer do alto, não poderá ver o Reino de Deus!”» (Jo 3,3)
  4. O homem que vive a vida divina não pode pecar: «Todo aquele que permanece nele não continua pecando, e todo aquele que continua pecando mostra que não o viu, nem o conheceu. […] Todo aquele que nasceu de Deus não vive em pecado, porque a semente de Deus fica nele; é impossível que ele viva pecando, pois nasceu de Deus» (1 Jo 3,6.9)
  5. Fazem morada nele o Pai e o Filho: «Jesus respondeu- lhe: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada» (Jo 14.23)
  6. O Espírito Santo também faz morada: «A prova de que permanecemos nele, e ele em nós, é que ele nos deu do seu Espírito» (1 Jo 4,13)

O verdadeiro hagiógrafo dos efeitos da graça é São Paulo nas suas Epístolas. O Apóstolo das gentes fala destes efeitos como:

  1. Uma progressiva transformação: «Todos nós, porém, com o rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor e, segundo esta imagem, somos transformados, de glória em glória, pelo Espírito do Senhor» (2 Cor 3,18)
  2. O homem dedicado ao mistério de Cristo transforma-se em nova criação: «Ser ou não ser circuncidado não tem importância; o que conta é ser nova criatura» (Gal 6,15); «Portanto, se alguém está em Cristo, é criatura nova. O que era antigo passou, agora tudo é novo» (2 Cor 5,17)
  3. O cristão torna-se templo de Deus: «Acaso não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá, pois o templo de Deus é santo, e esse templo sois vós. Vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus» (1 Cor 3,16-17).
  4. Viver como membro de Cristo: «Porventura ignorais que vossos corpos são membros de Cristo? Poderia eu fazer dos membros de Cristo membros de uma prostituta?! De modo algum!» (1 Cor 6,15)
  5. O fiel é filho do Pai: «Todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. De fato, vós não recebestes espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebestes o Espírito que, por adoção, vos torna filhos, e no qual clamamos: “Abbá, Pai!” O próprio Espírito se une ao nosso espírito, atestando que somos filhos de Deus. E, se somos filhos, somos também herdeiros: herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, se, de fato, sofremos com ele, para sermos também glorificados com ele» (Rom 8,14-17); «Com efeito, vós todos sois filhos de Deus pela fé no Cristo Jesus» (Gal 3,26)
  6. O cristão não é coagido pela externa Lei de Moisés, em sentido contrário é movido interiormente pelo Espírito de Deus: «Também vós, meus irmãos, morrestes em relação à Lei, mediante o corpo de Cristo, para pertencerdes a outro, àquele que ressurgiu dos mortos, a fim de que frutifiquemos para Deus. Quando vivíamos no nível da carne, as paixões pecaminosas, ativadas pela Lei, agiam em nossos membros, a fim de que frutificássemos para a morte. Agora, porém, mortos para aquilo que nos aprisionava, fomos libertados da Lei, de modo a servirmos no novo regime do Espírito e não mais no regime antiquado da letra» (Rm 7,4-6); «Todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. […] Da mesma forma, o Espírito vem em socorro de nossa fraqueza. Pois não sabemos o que pedir nem como pedir; é o próprio Espírito que intercede em nosso favor, com gemidos inefáveis. E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito, pois é de acordo com Deus que ele intercede em favor dos santos» (Rm 8,14.26-27);
  7. A graça permite que o fiel não apenas exteriormente realiza boas obras mas também estas sejam um profundo ato da vontade interior quando Deus age nele: «Na verdade, é Deus que produz em vós tanto o querer como o fazer, conforme o seu agrado» (Fil 2,13);
  8. N’Ele os cristãos dependem em cada pensamento de bem: «Por nós mesmos, não somos capazes de pôr a nosso crédito qualquer coisa como vinda de nós; a nossa capacidade vem de Deus» (2 Cor 3,5)
  9. Existe a distinção entre os efeitos da graça que são acessíveis a todos e aqueles superiores: «Aspirai aos dons mais elevados. E vou ainda mostrar-vos um caminho incomparavelmente superior» (1 Cor 12,31)

Como pudemos ver ao longo do nosso percurso sobre os efeitos da graça muitas são as descrições que praticamente se dirigem á boa vida do Evangelho pois a vida em abundância que Deus proporciona aos fiéis é confirmada pelas Escrituras. Contudo permanece a questão acerca daqueles que recebem a graça e quais as condições para a receber. Abordaremos esta questão no próximo artigo.

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