São Pedro convida os cristãos a «estar sempre prontos a dar uma resposta a quem pede uma explicação da esperança que há em vós» (1 Pd 3,15).
A ordem de Pedro envolve várias coisas.
A esperança, de que fala o Apóstolo, está no fundamento da fé, de modo que é essa fé que deve ser contabilizada, em sua concretização histórica e existencial, modulado na e pela esperança.
O sujeito responsável pela resposta são os cristãos como “vós“; “dar resposta” pertence não só aos indivíduos, mas sobretudo a toda a comunidade eclesial.
Os destinatários da resposta são os homens que estão com os cristãos onde e como estiverem, interlocutores reconhecidos de direito perante os crentes em Cristo.
a) O convite de Pedro é obrigatório, porque a “resposta” exige que os cristãos estejam «sempre prontos»; e exige a obediência da fé.
b) Os cristãos devem saber que os homens têm o direito de questioná-los, de modo que cabe tanto a eles, quanto à fé:
obedecer a Deus que fala;
obedecer aos homens que questionam.
c) O método que inicia a resposta requer, por um lado, que os cristãos estejam no Deus da fé sob cujo julgamento vivem e, por outro, que escutem os homens a quem devem prestar contas da fé.
Em outras palavras, “dar resposta” só é possível na escuta «dialógica» de Deus e dos homens. São Pedro acrescenta que a resposta não deve ser apenas verdadeira, mas também reconhecível, porque é oferecida «com mansidão e reverência, tendo uma boa consciência» (v. 16). A resposta, de fato, exige do fiel o compromisso de vida e adverte-o de que ela não é dada por um professor, mas por uma testemunha. A doutrina do cristão, portanto, repousa sobre o fundamento de seu testemunho.
O que significa que a resposta nunca pode ser gnóstica, mas o fruto emergente do discipulado de Cristo. De fato, Pedro diz que a razão da resposta do testemunho está na atitude radical do cristão, empenhado em «venerar» Cristo Senhor que está em seu coração (v. 15).
A advertência de Pedro constitui a carta fundamental de obrigação dos cristãos para conhecerem a Revelação. É a isso que os cristãos e a Igreja se referem em seu encontro racional e responsável com os homens, fiéis ou não.
Contudo, somos filhos de uma história, e ao longo dessa história de forma desigual e até alternativa foi-se sublinhando um ou outro aspecto até se tornarem através da sua radicalização confessionalista uma «oposição».
Uma está presente na tradição dos católicos, a outra na dos protestantes.
Na tradição católica, pelo menos nos últimos três séculos, tem se empenhado em uma resposta objetiva dominada pela racionalidade e conduzida com o critério da ciência. Com uma preocupação óbvia: colocar o universo da fé no mesmo patamar do rigor lógico exigido pelo incrédulo como método de suas aquisições cognitivas, tanto científicas quanto ético-históricas. Esta resposta já não é sustentável porque imaginava poder tratar a Revelação como um fato substancialmente adquirível, de modo que a fé permanecesse fora dela, quase um simples ato de acreditar para ter acesso ao objeto revelado.
Por exemplo, na definição de fé no catecismo de Pio X, lemos que a fé é a adesão à verdade revelada com base na autoridade atestante de Deus, o garante jurídico da revelação a ser acreditada.
Esta definição, não se sustenta por reduzir o «testemunho à esfera subjetiva», portanto, à esfera ética. A fé era assim externa à Revelação, para que pudesse permanecer independente disso. Como um projeto objetivante em que o universo subjetivo-testemunho foi assumido, sim, pela Igreja, mas também como instituição histórica e objetiva, e verificável com o mesmo método histórico-positivo ou metafísico lógico.
A Igreja protestante, por outro lado, sempre foi polemicamente colocada no pólo oposto em função da contradição entre a “theologia gloriae” e a “theologia crucis” (Lutero) resolvida na história em favor desta última. A acusação é feita contra o catolicismo ao ter rebaixado a revelação a um “objeto” da Igreja, relegada ao seu arbítrio humano. Por consequência, a resposta sobre a fé está no «testemunho» do qual a doutrina é apenas a formulação conceptual contingente. Para a visão protestante o universo da fé não está disponível para o homem, como tal não podem ser realizadas formulações lógico-científicas e ético-experimentais. A razão do homem só pode estar na obediência da fé, porque lhe falta qualquer acesso à Revelação, que não seja pela graça, e no poder do Espírito. Consequentemente, o testemunho dos cristãos torna-se o único lugar onde ressoa o apelo crítico de Deus, chamando o homem a sair de suas próprias razões para enfrentar o escândalo humanamente incompatível de Deus: a apologética doutrinária. Concluindo, para a teologia protestante é apenas racional a experiência e a relação.
Durante séculos a tradição católica privilegiou o conteúdo da Revelação, para ficar na fé, e colocou de lado a Revelação enquanto comunicação de Deus, reduzindo o conteúdo à ciência humana.
A tradição protestante, por outro lado, privilegiou o conteúdo da Revelação, colocando-o como completo e exclusivamente aberto para o fiel, prescindindo de um juízo racional autônomo.
É evidente que estas duas tradições não são o fruto de si mesmas ou de seus próprios princípios. São o reflexo de duas antropologias que consideram o homem, respectivamente, disponível ou não a Deus, ou seja, são fruto de uma pré-compreensão teológica radical que afirma (católicos) ou nega (protestantes) a possibilidade de uma justificação da presença de Deus no mundo apesar de todos os males.
Nos dois extremos:
É evidente que a formação da tradição católica e a oposição da tradição protestante são fruto de um contexto polêmico, que impediu de imediato uma reflexão livre e serena. A parcialidade das duas posições é clara para todos hoje.
Por esta razão, a compreensão das razões da fé hoje já não pode ser apenas a Revelação como objeto a ser estudado nem como sujeito que não possa ser dito comunitariamente, por isso no âmbito mariológico falamos de mariologia bíblica integral.
A “integralidade” da mariologia atual acredita que pode recuperar e recompor o duplo dado petrino a partir da certeza de que o homem, apesar de estar diante de Deus e fora de Deus externo, está sempre na sua presença. Deus fala ao homem, para que cada Palavra de Deus, precisamente porque se dirige a ele, o coloque na Revelação e é neste diálogo de Revelação que encontramos Maria na Anunciação.
A revelação, portanto, ao mesmo tempo que declara Deus disponível ao homem, com o mesmo movimento declara o homem disponível a Deus, por isso ouvimos o Eis a Serva do Senhor, faça-se em mim segundo o que disseste.
Com uma consequência precisa: Deus não é mais pensável sem o homem (Encarnação), assim como o homem não é de modo algum pensável sem Deus (Assunção).
Maria não pode ser considerada «em si mesma» a sua historicidade sempre a colocou dentro do plano de salvação inaugurado por Deus com a criação. Essa historicidade impede a pura objetividade ou – como se costuma dizer – uma mariologia metafísica, no sentido de que a Virgem entrou na vida radicalmente destinada a Cristo; tal como Maria no Magnificat também a nossa história é sempre e somente a história da salvação. Isso significa que Deus, Maria e com ela todos os homens estão na exclusividade de uma história da salvação.
A Mariologia bíblica adverte que a visão do homem revelada por Deus pode ser compreendida de forma metafísica apenas no contexto de uma criação dinâmica que intervém sobre cada vida, cada história pessoal e comunitária para dar a forma de Cristo. Consequentemente, a mariologia bíblica exige ser integral no fundamento desta antropologia integral. As respostas podem ser várias, porém uma certeza vem da Revelação: o homem não é Homem, mas este homem, porque é um homem desta história.
Necessitamos deste esclarecimento para colocar na devida perspectiva o problema que diz respeito à credibilidade do cristianismo, de modo a podermos falar da sua disponibilidade ao homem, como o homem recebe a Revelação, não só na sua condição de historicidade, mas sobretudo na sua condição de homem que progressivamente, se encontra a si mesmo neste diálogo entre projeção pessoal e encontro com Deus que se revela.
Ao longo do nosso percurso tenhamos sempre em mente o mandamento formulado por Pedro.
Santo Agostinho: falando de Cristo, declara: “Visus est homo deinde creditus est Deus” [O homem foi visto, então Deus foi acreditado]. Conforme a tradição dos Padres dos primeiros IV séculos, o visus é histórico, isto é, experimental, segundo a dinâmica da encarnação quando olhamos para a história da Salvação. O visus agostiniano implica um Cristo em que, por um lado, o processo de fatos e palavras que prepararam o seu evento chega a um cumprimento histórico e, por outro, abre-se um itinerário que vai para além da realização histórica, ou seja, a realização escatológica e é isto que significa a Mariologia bíblica integral porque abarca o homem em sua integralidade dinâmica. Isso significa que a primeira tradição cristã não conheceu uma mediação entre Cristo e o homem de natureza essencialista e estática como depois a filosofia platônica ensinou.
Essa mediação (Deus-Maria-Igreja) foi e só poderia ser dinâmica, segundo as categorias de historicidade aberta, presente e futura. Um encontro sempre datado.
Como proposta consequente, todo discurso sobre Cristo feito ao não-cristão só pode ser colocado dentro da existência da testemunha que fala dele, para que o ouvinte possa reconhecê-lo, no sentido de que o cristão e o não-cristão compartilham uma humanitas fundada no logos, já ocorrendo no coração humano (logos spermatikós [a semente do Verbo]).
1) A Revelação, por se dirigir ao homem, não podia deixar de estar disponível ao homem;
2) O homem é reconhecido por Deus como capaz de acolhê-lo. O que quer dizer que a revelação tem Deus e o homem como seu referente permanente. Portanto, não existe uma mariologia bíblica que possa prescindir da criaturalidade feminina de Maria, a absoluta transcendência de Deus e da divino-humanidade de Jesus.
A Revelação pode ser reconhecida pelo não-cristão pela força conclusiva demonstrada pelos testemunhos dos fiéis, acima de toda a experiência humana, seja ela ética, religiosa ou até mesmo reflexiva, dentro da qual o não-cristão coloca responsavelmente a radical questão sobre a existência. A credibilidade do Evangelho tem a sua raiz em Deus, em relação ao qual, o homem, sempre devido a Deus, está aberto porque responde a uma proposta.
O problema da credibilidade da Revelação que atinge a Mariologia bíblica surge hoje enquanto se denota a insuficiência do discurso clássico, que considera a credibilidade como resultado da racionalidade interna, considerada homogênea à racionalidade pura do homem. Em termos mais concretos, a partir do momento em que fazemos uma demonstração de Deus, logo todo o homem racional irá acreditar, pois a razão da Revelação e razão do homem coincidem…
A formalização conceitual passa por cima da historicidade do homem e da Revelação, no sentido de que ambos seriam tratados como objetos, apreendidos a partir de fora e a partir de cima da experiência histórica.
Mariologia bíblica atualmente considera a credibilidade como o componente histórico-antropológico da Revelação. Portanto, a forma de interpretarmos deve ser escolhida, devido à certeza colocada pela Revelação. Dessa forma, o tipo de credibilidade a ser pensado, embora submetido à verificação crítico-antropológica, pode ser afirmado por clareza teológica e não por clareza filosófica.
Isso determina uma série de indicações metodológicas que podem ser formuladas da seguinte forma.
Em primeiro lugar, por credibilidade queremos dizer a «verdade significativa».
O «significado» de que estamos falando aqui diz respeito a fatos e palavras, no sentido de que “fatos” referem-se a “palavras“, de modo que estas dão sentido ao que os “dados” produzem.
As palavras remetem aos fatos, de modo que estes revelam a densidade hermenêutica e explicativa das palavras. Isso significa que a significação impede que o discurso sobre a verdade permaneça interno a si mesmo e o obriga à conjugação existencial, em que a verdade sempre se refere ao homem em sua totalidade histórica.
O que aconteceu na encarnação tem um valor universal localizado no tempo, ou a vida de Maria tem uma influência concreta em cada um dos fiéis que ouvem e concebem a Palavra dentro de si, entregando através do anúncio e do testemunho Cristo ao mundo?
Isso significa que a primeira das verdades é o homem em sua realidade ôntica, onde a verdade anunciada encontra o lugar essencial e justamente para ser aceita e compreendida. Em outras palavras, o homem da verdade, é, então, a verdade do homem, é o lugar exclusivo onde a verdade é oferecida para vir à luz sob todos os aspectos.
1- O habitat da verdade é a história. Isto significa que o horizonte onde a verdade está à disposição do homem é a temporalidade. Ou seja, o acesso à verdade se abre a partir da experiência, tanto interna, no santuário do nosso coração, quanto externa, na vida de relação com Deus, com o mundo e com os que me rodeiam. O homem já se encontra ali, devido à tradição da qual o momento presente jamais se poderá desprender dela como pura singularidade, como se a história começasse com ele.
Assim, Maria se dispõe ao conhecimento revelado pelo Anjo e que lhe revela a credibilidade do ser e do fazer a partir da historicidade total, que se recolhe nela para se preparar para o futuro, que parte apenas dela, como uma história que tem sentido (Missão do Filho).
2- A verdade é dita na palavra. Isto significa que a credibilidade encontra-se na forma de discurso, diálogo mais do que da fórmula. Por outras palavras, o discurso da e sobre a verdade depende da verdade do discurso que dela fala. A verdade é sempre e somente acessível enquanto é dita (o Verbo encarnou no diálogo entre Deus e Maria). O seu status é linguístico e semântico, de modo que está disponível de forma rigorosamente hermenêutica, tempo, história e espaço. O fundamento da relação fato-palavra emerge nessa certeza, no sentido de que o fato, enquanto se distingue da palavra que o narra, encontra sua realização nessa palavra, porque é fato-palavra (Deus disse e tudo foi feito, ele falou e tudo foi criado). O mesmo vale para a palavra. Diz-se dentro da realidade, não se confunde com a realidade, mas cria na realidade devido à historicidade do homem que a diz e isto leva ao significado
3 – A história está sempre em condição de mediação. Porque enunciada, ela se manifesta ao homem e o homem nela se manifesta através dos sinais. Atos e palavras, isto é, nunca são conclusivos. Por quanto possam pertencer a um momento espiritual de uma realidade, ao mesmo tempo, em que se revela na realidade, também a transcende, pela prontidão para se expressar, justamente por ser realidade em outros contextos culturais.
Toda busca de credibilidade, de fé e de revelação deve respeitar hoje esta tríplice condição, da qual a Mariologia bíblica não é exceção.
A leitura bíblica da pessoa de Maria hoje é antropologicamente mais madura e reflete a necessidade de uma seriedade mais experiente e mais consciente. Apesar disso, é igualmente certo que esta leitura é a única capaz de oferecer um discurso cristão que tenha um sentido para o homem contemporâneo. E ainda: a metodologia que se propõe faz jus à realidade cristã, que hoje se recupera em sua totalidade como Palavra de Deus:
– acontecimento ou evento,
– fato e discurso,
– fé, entendida como fato e discurso do homem que responde à Palavra de Deus que o questiona.
A possibilidade de um discurso unitário, com uma única metodologia crítica, sobre revelação-fé, tradição-inspiração, dogma-magistério e consequentemente Mariologia.
O critério é formado pelos problemas teológicos e histórico-fenomenológicos particulares colocados pela exegese dos textos e fatos cristãos: a Bíblia, Cristo e a Igreja. A impossibilidade de ler com o critério fundamentalista é certa para todos, como se fossem textos e fatos livres de qualquer mediação, numa suposta objetividade pura e sem telas. A mediação pertence ao estatuto próprio de todo fato histórico. O fato é tal porque é posto pelo homem, de modo que, enquanto envolve o homem, permanece envolvido pela percepção humana.
Um fato torna-se histórico quando passa pela experiência do homem que não pode nem se dar a si mesmo senão nessa mesma experiência. Por isso é certo que a história só está disponível em termos hermenêuticos, no sentido de que a tradição, como história das doutrinas, é o lugar crítico-consciente da história em sua construção.
A experiência cristã de Maria é a interpretação vivida pela Revelação, aceita e expressa na fé, onde a Revelação é dada para se manifestar. Isso não significa que a revelação se torne fato (objetivo) devido à criatividade da fé (subjetiva). Em vez disso, significa que o evento-revelação está disponível ao homem apenas pela fé, o qual, enquanto pertencente ao evento, manifesta a sua significativa historicidade. A Mariologia bíblica está sob a orientação dessa certeza.
Consequentemente, os títulos de credibilidade da Mariologia bíblica na mensagem cristã que propomos passam por essa prova.
Trata-se, então, de examinar sua consistência, seguindo as etapas da
1 – profecia;
2 – do milagre;
3 – da encarnação de Cristo.
A Mariologia bíblica clássica valorizou o argumento da profecia (Is 7,14) e do milagre (Natal da Virgem) de forma absolutamente privilegiada em favor de uma demonstração da divindade de Cristo. Atualmente, os muitos problemas colocados pela exegese suscitaram considerável perplexidade, de modo que é possível observar um declínio maciço do interesse, que chega ao limite da desconfiança. Quase parece que o milagre e a profecia são considerados meios ingênuos e insustentáveis, pois não atendem às necessidades culturais do homem moderno. Trata-se, então, de retomar a argumentação de forma nova e metodologicamente correta. Tentemos!
Os biblistas acreditam ser apropriado falar de profecia dentro do próprio uso que a Escritura faz dela, que apresenta o Novo Testamento como o lugar onde as Escrituras se cumprem. As expressões são: segundo as Escrituras; prometido pelos profetas nas Sagradas Escrituras; para que se cumpram as Escrituras, como anunciado pelo profeta (cf. 1 Cor 15,3ss.), entre outras.
A síntese é dada por Paulo, que coloca todo o mistério pascal sob o juízo do Antigo Testamento (Rm 1,2ss.). A perspectiva não responde apenas à perspectiva interpretativa da Igreja primitiva. Os Evangelhos fazem a comparação segundo o testemunho que dão do ensino de Jesus, que pregou colocando em paralelo fatos e palavras em continuidade com a mensagem do Antigo Testamento. Trata-se, portanto, de compreender o significado dessas afirmações. O cumprimento mencionado aqui não é apenas sobre profecia ou profecias. Jesus é explícito a esse respeito: «Não vim abolir, mas cumprir a Lei e os Profetas» (Mt 5,17). Lei e Profetas: o cumprimento, ou seja, não é fruto de uma “profecia” que contestou a lei da época, a realização tem um significado mais amplo. Refere-se ao ato pelo qual «é dispensado o mistério oculto em Deus desde o princípio» (Ef 3,8). Cristo é o cumprimento, e é toda a Escritura que encontra o seu destino nele.
O uso correto da “profecia” requer, a consciência de várias coisas:
1- a profecia no sentido específico da palavra dos profetas é uma promessa e nunca uma previsão. Quando é previsão, só o é a médio prazo, com um significado que o transcende, porque se encontra no quadro mais amplo da promessa (cf. 2 Reis 9-20). Isso é reafirmado pelo fato de que a profecia não diz respeito apenas ao futuro: é a Palavra de Deus que, com o mesmo movimento, também põe em julgamento o passado e o presente. O futuro faz sentido na perspectiva do passado, como lugar da promessa; assim como o passado ganha sentido no futuro para o qual está destinado.
2 – A profecia-promessa tem caráter escatológico tem valor não como discurso sobre os fatos, mas como discurso sobre o fim ao qual estão destinados os fatos. Isso exige uma leitura da profecia sempre pautada por essa categoria para que cada momento da história narrada se abra para além, para o futuro que a condiciona. Isso significa haver uma hierarquia de valores, devido ao caráter histórico-dinâmico da antropologia. Deve ser respeitado, tendo em conta que o conteúdo explícito e prometido sempre e apenas diz respeito à Salvação. Refere-se a Cristo, de modo que a promessa, ao falar de Cristo, deixa o critério histórico do cumprimento de sua forma inteiramente a Deus.
3 – A linguagem própria da profecia se move dentro do regime escatológico da promessa. Articula-se na forma literária do oráculo que se estrutura de forma simbólico-realista. A forma simbólica é a projeção de uma experiência vivida de alguma forma, porque já aconteceu: “êxodo”, “terra prometida”, “o templo”, declarado, em perspectiva, “nova”. O “novo” se expressa pela carga simbólica das imagens, que veem como “unidade” o que ninguém pode experimentar, justamente porque é radicalmente “novo“. A forma realista é a concretude dessa “prefiguração”, porque reflete em sua figura o sentido mais profundo da experiência existencial do homem (a virgem conceberá). A linguagem filtra a realidade e evidencia a sua significação religiosa posta em ação ao final, por meio de um discurso de imagens que, embora partam de uma experiência já vivida, a transcendem para uma experiência esperada, que justamente, ainda que esperada, permanece sempre experiência.
A profecia de Cristo é Cristo que se coloca no centro da história salvífica. Leva a Cristo, para que se decida sobre ele. A profecia é o pedido radical por esta decisão. O fiel lê a profecia em Cristo; o incrédulo é questionado, devido à profecia, sobre a identidade que Cristo reconhece e sobre o sentido que dá ao seu ministério. É esta identidade e este ministério que o não fiel deve verificar, pelo peso concreto que manifestam na vida dos discípulos e pela determinação que podem provocar na sua vida pessoal.
Os milagres não podem ser analisados com o critério iluminista e positivista. São certamente fatos históricos, que a exegese, em todas as suas formas, ajuda a esclarecer. No entanto, eles são, antes de tudo, “sinal” e “promessa” escatológica. Esta é a perspectiva com que a Mariologia bíblica se deve preocupar. Deve vencer a tentação fisicalista que todos nós temos, que considera os “milagres” como “objetos“, disponíveis para “demonstrar” a credibilidade da revelação de que são o aval físico-racional. O milagre não pode ser uma prova nesse sentido. O discurso bíblico sobre os milagres é preservado para nós pela mediação da fé da comunidade dos fiéis, dentro da qual a memória dos fatos se tornou um livro. Uma fé que certamente não é a fonte dos fatos, mas que é a fonte para compreender seu significado. As histórias verdadeiras revelam seu significado de concretude e verdade somente a partir dessa fé, a única capaz de percebê-las com precisão.
Este esclarecimento de grande significado para a Mariologia Bíblica recupera a Tradição patrística, particularmente sensível à perspectiva salvífica, abandonada pela teologia e pela apologética iluminista e pós-iluminista. A recuperação, então, de um discurso sobre a Revelação e sobre Cristo a partir de milagres requer que tenhamos em mente vários aspectos:
1 – A natureza não extraordinária do milagre como um fato físico. Jesus declara que milagres também podem ser realizados por falsos profetas (Mc 13,22-23; Mt 7,22). Nisto retoma uma admoestação já presente no Antigo Testamento (Dt 13,2-6). Isso significa que o milagre exige um compromisso de discernimento das testemunhas, para não confundir o “sinal” que lhes foi oferecido. A presença ou ausência desse discernimento pode, de fato, causar sua inutilidade, como aconteceu com as cidades da Galiléia (Mt 11,21-24); podem quebrar o padrão religioso das testemunhas, como aconteceu com os líderes espirituais de Israel, para que os “milagres” não sejam percebidos como “sinais” de Deus (Mc 3,22; Mt 9,34, Jo 5,l8); enfim, podem envolver testemunhas em diversos níveis: da fé imperfeita (Jo 2,23-25) à fé séria e declarada (Jo 6,68-69; 9,38). Os milagres, portanto, não são “acontecimentos” anônimos: eles são enquadrados em um esquema de valores, de modo que Jesus declara explicitamente que os “sinais” mais espirituais têm relevância (Lc 16,31; Jo 14,11).
2 – Jesus rejeita o milagre como uma curiosidade. Tanto o exasperado que “tenta” a Deus (Mt 4,5-7), como o da incredulidade que pede “sinais no céu” (Mt 12,38-39), e o da futilidade competitiva dos nazarenos (Lc 4,23). Não há lugar para o milagre “maravilha” (Lc 23,8-9). Jesus é rigoroso. O milagre não reflete suas vantagens pessoais, nem mesmo na cruz, onde está em jogo sua vida (Mc 15,31-32). Jesus realiza milagres com sobriedade e discrição. Muitas vezes ele os esconde da multidão para entregá-los aos mais próximos, ou seja, a quem pode entender melhor o significado. E a economia do silêncio nesse sentido é testemunhada por Marco. Em outras palavras, Jesus parece “rebaixar” o milagre diante do significado da mensagem que anuncia (Jo 9, 35-41). Naturalmente, Jesus também realiza milagres públicos e solenes (Mc 1,32-34; 5,25-34). Ele até envia os “curados” ao templo, em obediência à lei. Seu interesse, no entanto, nunca é privado. Eles sempre manifestam os títulos de seu ministério messiânico. É por isso que ele ordena que o endemoninhado liberto proclame o que aconteceu com ele por toda a incrédula Decápolis (Mc 5,19-20). São João resume isto afirmando que os milagres são dados «para que se creia que Jesus é o Cristo, o filho de Deus, para que, crendo nele, tenhamos vida em seu nome” (Jo 20, 30-31)».
3 – O discurso bíblico deve falar de milagres sem triunfalismos indutivos. O inusitado não corresponde à lógica evangélica. Israel teve uma história de milagres muito mais gritantes, comparados aos quais os evangélicos são escassos e modestos. O que importa notar é o sentido posto em movimento por Jesus: eles certificam que o Reino de Deus chegou (Mt 12,28) e realizam a presença da sua pessoa. O milagre é um apelo que chama à fé e à decisão em Cristo. Por isso não se deve esquecer que o milagre tem dentro de si um desafio: abre e fecha à fé. Precisamente, ele pede discernimento, porque onde o Espírito de Deus acontece e atua, o homem deve estar disponível.
A Mariologia bíblica deve enfatizar essa disponibilidade, colocando a ênfase no Cristo dos milagres, ao invés dos milagres de Cristo. Trata-se sempre de introduzir as condições para que o incrédulo encontre a pessoa de Cristo em toda a sua obra.
Deve-se advertir imediatamente que não podemos nos contentar em chamar Maria e considerá-la uma fiel, mas devemos nos esforçar para chamá-la de A fiel. Por haver escutado a Palavra, é fiel. Por isso São Paulo pode afirmar «Fides ex auditu» (Rm 10,17).
Ela é a Fiel pelas mesmas razões: por escutar a Palavra, mas o faz com uma intensidade, continuidade e vastidão insuperáveis. Por ser a criatura do Verbo, Maria é também a Fiel nascida do Verbo, consolada, motivada, alimentada ao longo de sua existência como Discípula e Mãe Messiânica.
1. No Princípio é a Palavra
Ao dizer “No princípio era o Verbo“, João evoca a primeira frase da Bíblia que diz: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (Gn 1,1). Deus criou tudo através de sua Palavra. “Fala e tudo está feito” (Sl 33,9; 148,5).
Todas as criaturas são uma expressão da Palavra de Deus, esta Palavra viva de Deus, presente em todas as coisas, resplandece nas trevas. A escuridão tenta apagá-lo, mas não consegue. A busca de Deus, sempre nova, renasce no coração humano. Ninguém pode encobri-lo. Não podemos viver sem Deus por muito tempo!
No Prólogo do seu Evangelho, João descreve o caminho do Verbo de Deus: Ele estava ao lado de Deus, desde antes da criação, e através dela tudo foi criado. Tudo o que existe é expressão da Palavra de Deus, como acontece com a Sabedoria de Deus (cf. Pr 8,22-31).
Também a Palavra quis se aproximar de nós e se fez carne em Jesus, na sua missão e voltou para Deus. Jesus é esta Palavra de Deus. Tudo o que ele diz e faz é uma comunicação que nos revela o Pai.
Assim como a primeira criação começa a partir da Palavra, a nova criação começa novamente a partir da Palavra:
«Naquele tempo, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem, desposada com um homem da casa de Davi, chamado José. A virgem se chamava Maria. Entrando nela, disse: “Alegra-te, cheia de graça: o Senhor está contigo. […] E eis que conceberás um filho, o darás à luz e o chamarás de Jesus”. […] Então Maria disse: “Eis a serva do Senhor: faça-se em mim segundo a tua palavra”. E o anjo afastou-se dela» (cf. Lc 1,26-38).
O encontro entre a Palavra de Deus e o Sim de Maria inicia os novos tempos. A Anunciação é um acontecimento decisivo na história da salvação, pois marca a passagem da primeira à nova aliança; e é um acontecimento que marca também a viragem decisiva na existência de Maria, precisamente com a aceitação da fé desde o início. Por isso o Catecismo da Igreja Católica n. 494 afirma: «no momento da Anunciação, ela decide existir totalmente com base na fé. Por fé, doravante, ela não é nada, e tudo o que ela é é um ato de fé. (Catecismo da Igreja Católica (1992).
O nome cristão-marialógico desta obediência é a fé, citando a conhecida expressão paulina: ao anúncio angélico que lhe oferecia uma maternidade humanamente impossível (“não conheço homem algum…”), Maria responde com “a obediência da fé” (Rm 1,5).
O diálogo com a Palavra. É um detalhe decisivo para compreender o mistério mariano, tê-la conhecido pela escuta da Palavra: é, em certo sentido, a sua postura fundamental, a sua condição existencial básica. De fato, tendo começado a sua aparição no Evangelho pela escuta da Palavra, isso é relevante para a definição do cristianismo como religião da Palavra, passando assim a ser, Maria, símbolo do cristianismo. De fato, os fiéis são, por essência, ouvintes da Palavra, ou melhor, «os que praticam a palavra e não somente ouvintes» (Tg 1,22).
Mas, se é verdade que a Palavra de Deus conserva o seu sentido mesmo que não haja quem a escute, não é menos verdade que a escuta é a finalidade que o locutor se propõe subjetivamente e a Palavra exige objetivamente. Maria, como membro de Israel e como rebento da Igreja da nova aliança, mostra-se totalmente imersa na lógica inextricável da escuta-anúncio, que vê Deus e seu povo empenhados na escuta mútua. Assim, Maria sente-se parte de um povo de escuta, o mesmo do Shema Ishrael Ouça, Israel! (Dt 6,4): é o ‘Credo‘ do povo eleito para o qual a escuta foi um tema pedagógico fundamental ao qual Deus, por muito tempo e com muitas vozes, iniciou e formou seu povo (Dt 6,4; Am 3,1; Pr 1,8).
Em Nazaré, ponto nodal da história da salvação, não é mais a assembléia do povo eleito que é questionada sobre a Aliança, mas uma pessoa individual, a virgem de Nazaré, em cujo seio Deus decidiu vestir nossa carne, como sinal inicial da nova e eterna aliança.
Na Anunciação existe um diálogo de aliança que evoca a aliança celebrada por Deus com Abraão (cf. Gn 15) e com Moisés (cf. Ex 24). O arcanjo Gabriel comunica aos homens a proposta de Deus de enviar o Filho como Salvador, e Maria, mesmo com a singularidade de um sim pessoal, responde em nome de toda a humanidade, permitindo o nascimento do filho, que é o Messias (cf. Lc 1,33), o Filho do Altíssimo (cf. Lc 1,32), o Filho de Deus (cf. Lc 1,35). O consentimento de Maria à proposta angélica tem um caráter inovador e decisivo, pois sela uma nova e definitiva aliança de Deus com os homens. O sim de Maria faz a transição do Antigo ao Novo Testamento, do tempo anterior a Cristo ao tempo de Cristo.
Estamos diante do evento decisivo da história humana, porque nela se cumpriu o anseio pela salvação dos povos, simbolizado e representado pela esperança de Israel: em Maria, a expectativa universal do Messias uniu-se a uma expectativa totalmente pessoal, que ela certamente não poderia ter especificado, é o evento decisivo na vida de Maria. Aqui está o acesso a toda a sua existência.
O sim pronunciado por Maria na Anunciação abre-se como uma estrela a outros sims pronunciados na história da salvação:
O Mistério de amor, para refazer a história com leitura como o Evangelho de Lucas nos apresenta, a Anunciação parece ser composta de um anúncio-pergunta e uma escuta-resposta (cf. Lc 1,26-38): o anúncio vai ao encontro da liberdade da Virgem, por isso chamada e exortada ao serviço da redenção. Mas aqui existe uma aparência da mais singular beleza: oferece o acontecimento que faz contemplar o encolhimento do tudo no fragmento; a bela surpresa ocorre a do tudo que se concentra humildemente na porção, na vida de uma criatura, Maria de Nazaré: neste instante a sua vida pessoal e a história da revelação, que vale para todos, coincidem!
Depois disso, na Anunciação, toda a revelação se comprime no fragmento da existência mariana, acontece que a Virgem de Nazaré é engrandecida por Deus em sua fé. Ela deve acreditar em lugar de todo Israel; deve estar à altura da história do povo de Deus. O que se exige de Maria é um passo que vai ao impenetrável: a fé pura. Sob a orientação de Deus, ela deve arriscar o seu ser pessoal aventurando-se em algo, o que é impossível em uma suposição puramente natural. Com isso ela deve fazer o que, na história da revelação que aconteceu até então, o povo eleito deveria ter feito continuamente, mas raramente o fez: ter uma história que brote da fé, onde receba a própria forma de sua existência humana.
O Pai dirige-se à Virgem, propondo-lhe participar da Encarnação, conduz o diálogo, mas também permite que a sua criatura interaja em plena dignidade de criatura, podendo exercer não só a escuta, mas também ser perturbado (cf. Lc 1,29) e levanta a objeção (cf. Lc 1,34), como criatura plenamente livre, e ela, com a reflexividade e a problematicidade típicas de uma pessoa plenamente livre (cf. Lc 1,34), respondeu ao anjo: «Faça-se em mim o que disseste» (Lc 1,38). É precisamente nesta relação particular de paternidade divina e maternidade mariana para com Cristo que se capta outro raio de luz particular, como faísca de beleza que brota do misterioso encontro entre Criador e criatura, entre o Pai celeste e a Virgem Maria. Ela se torna, na medida do possível para uma criatura, a parceira de Deus na geração histórica do Filho e de sua missão. Esta presença estendida de Maria na existência e na ação do Filho Redentor e Salvador é entendida implícitamente na Anunciação como proposta sintética de Deus e na força do sim mariano como resposta sintética à oferta divina.
Portanto, o sim de Maria ao Anjo anunciador é a palavra de uma criatura e filha que, em sintonia com a Palavra de Deus, exprimiu sobretudo uma força performativa; ou seja, teve um efeito transformador no momento em que foi pronunciada: ao permitir a santificação daquele fragmento do dia de Nazaré, permitiu a virada decisiva em toda a história dos homens. O sim de Maria à Palavra permanece um paradigma da vida cristã, que, afinal, é uma vida de obediência à Palavra.
Inaugurando esta primeira Jornada Bíblico-Mariológica acredito que entenderemos como estamos perante uma imensidão mariológica inesgotável e que ainda não ganhou cidadania na nossa existência mariológica. Pode o cristianismo viver sem a mariológica escuta da Palavra? Eu acredito que não!
Prof. Dr. Daniel Afonso
Profa. Carolline Muniz
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