Sagrada Família
Na revelação bíblica
José, Maria e o Menino Jesus formam uma família (οἰκία, bet, casa), uma comunidade que vive junta numa casa (ou tenda). Como tal, os três são apresentados durante a fuga para o Egito e o retorno («Levanta-te, toma o Menino e sua mãe e foge para o Egito» e «Levanta-te, toma o Menino e sua mãe e vai para a terra de Israel», Mt 2,13.19–21), na apresentação no Templo («Quando se completaram os dias da purificação deles, conforme a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém para apresentá-lo ao Senhor», Lc 2,22–24) e na peregrinação ao Templo com o Menino de doze anos («Iam seus pais todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa», Lc 2,41–52). Maria e José estão unidos pelo matrimônio («José, filho de Davi, não temas receber Maria como tua mulher», Mt 1,20; «Subiu também José, da Galileia, da cidade de Nazaré, para a Judeia, para a cidade de Davi, chamada Belém, porque era da casa e da linhagem de Davi, a fim de alistar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida», Lc 2,4). O propósito deste matrimônio é o Menino Jesus, concebido por Maria não de modo natural, mas pelo Espírito Santo («Antes de coabitarem, foi encontrada grávida do Espírito Santo», Mt 1,18; «O que foi gerado nela é do Espírito Santo», Mt 1,20; «O Espírito Santo virá sobre ti, e a força do Altíssimo te cobrirá com sua sombra», Lc 1,35 – nascimento virginal, concepção sem pai).
Jesus é publicamente considerado filho de José («E era, conforme se pensava, filho de José», Lc 3,23). Legalmente, José é reconhecido como pai de Jesus (genealogias: «Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo», Mt 1,2–16; «Jesus, ao iniciar o ministério, tinha cerca de trinta anos e era, conforme se pensava, filho de José, filho de Eli», Lc 3,23–38). Lucas, sem hesitação, chama José e Maria de “pais” de Jesus («E seus pais estavam admirados com o que se dizia dele», Lc 2,27; «Iam seus pais todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa», Lc 2,41; «Pensando, porém, que estivesse na caravana, caminharam o dia todo e o procuraram entre os parentes e conhecidos. E não o encontrando, voltaram a Jerusalém à sua procura», Lc 2,43), pois já tratou detalhadamente da concepção virginal («E o anjo disse-lhe: Não temas, Maria, porque achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás no ventre e darás à luz um filho, e o chamarás Jesus», Lc 1,26–38).
José tem uma relação diferente com Jesus em comparação com Maria. Mateus expressa isso com a fórmula «o Menino e sua mãe» («E entrando na casa, viram o Menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, adoraram-no», Mt 2,11; «Levanta-te, toma o Menino e sua mãe e foge para o Egito», Mt 2,13; «Levanta-te, toma o Menino e sua mãe e vai para a terra de Israel», Mt 2,20; «Ele levantou-se, tomou o Menino e sua mãe e foi para a terra de Israel», Mt 2,21) (cf. E. Neilessen, Das Kind und seine Mutter, in: SBS 39 [1969], 94–96). José exerce os direitos de pai. Deus lhe confere, como chefe da família, revelações e missões. É ele quem deve dar o nome ao Menino («Ela dará à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois ele salvará seu povo dos pecados deles», Mt 1,21; diferentemente de Lc 1,31: «Eis que conceberás no ventre e darás à luz um filho, e o chamarás Jesus») e quem conduz a fuga, o retorno e o estabelecimento em Nazaré («Levanta-te, toma o Menino e sua mãe e foge para o Egito», Mt 2,13; «Levanta-te, toma o Menino e sua mãe e vai para a terra de Israel», Mt 2,20; «Ele levantou-se, tomou o Menino e sua mãe e foi para a terra de Israel», Mt 2,21; «E veio habitar numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que foi dito pelos profetas: Ele será chamado Nazareno», Mt 2,23). As missões são cumpridas literalmente, conforme foram dadas.
Inserido na família, Jesus encontra segurança e espaço para se desenvolver. A paternidade de José protege a posição social de Jesus e resguarda Maria e o Menino de perigos iminentes («E ele, ao saber que Arquelau reinava na Judeia no lugar de Herodes, seu pai, teve medo de ir para lá; e, avisado em sonho, retirou-se para as partes da Galileia», Mt 2,22). A preocupação de Maria é expressa na frase dirigida ao Menino de doze anos: «Teu pai e eu, angustiados, te procurávamos» (Lc 2,48).
O relato da infância em Lucas demonstra interesse pelo desenvolvimento de Jesus no contexto familiar. Cabia ao pai introduzir o Menino no credo, na Lei e nas práticas religiosas. É a partir dessa responsabilidade que se compreende a peregrinação pascal ao Templo com o Menino de doze anos («Iam seus pais todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa», Lc 2,41). Sob os cuidados dos pais, o Menino desenvolve-se, passando de βρέφος (recém-nascido, «E isto será um sinal para vós: encontrareis um recém-nascido envolto em panos e deitado numa manjedoura», Lc 2,12.16), a παιδίον (criança, «E veio pelo Espírito ao Templo. E quando os pais trouxeram o Menino Jesus para cumprirem com ele os preceitos da Lei», Lc 2,27; «E o Menino crescia e fortalecia-se, cheio de sabedoria, e a graça de Deus estava sobre ele», Lc 2,40) e finalmente a παῖς (jovem, «E ao voltarem os dias, o Menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o percebessem», Lc 2,43). Lucas menciona duas vezes o progresso humano de Jesus («E o Menino crescia e fortalecia-se, cheio de sabedoria, e a graça de Deus estava sobre ele», Lc 2,40; «E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens», Lc 2,52, cf. 2 Sam 2,26).
O Menino de doze anos viaja com os parentes e conhecidos («E pensando que ele estivesse na caravana, viajaram por um dia e começaram a procurá-lo entre os parentes e conhecidos», Lc 2,44); possivelmente, a referência aos «irmãos e irmãs» de Jesus («Não é este o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, José, Judas e Simão? E suas irmãs, não estão aqui entre nós?», Mc 6,3) também indique o círculo familiar no qual ele cresceu.
A celebração da Revelação
A festa da Sagrada Família é celebrada no domingo dentro da oitava do Natal e é considerada uma festa do Senhor. Caso o dia 25 de dezembro (e, consequentemente, também o dia 1º de janeiro) coincida com um domingo, a festa é celebrada no dia 30 de dezembro. Esta celebração expressa a veneração à Sagrada Família (Jesus, Maria e José), que experimentou um notável crescimento especialmente na segunda metade do século XIX, sobretudo durante o pontificado de Leão XIII, quando o modelo da família cristã foi enfatizado como resposta às correntes contrárias à família.
A festa da Sagrada Família, uma celebração relativamente recente de devoção ou temática, foi permitida desde 1893, mediante solicitação de dioceses e ordens religiosas, para ser celebrada no terceiro domingo após a Epifania; em 1911 foi temporariamente suspensa; em 1920 foi introduzida como festa universal na Igreja, sendo fixada para o domingo após 6 de janeiro. Na reforma litúrgica pós-conciliar, foi mantida intencionalmente e transferida para o domingo dentro da oitava do Natal. A festa da Sagrada Família, diante do atual calendário de leituras (ciclos A, B e C) e com suas orações, oferece valiosos pontos pastorais (inclusive marianos), que tornam o chamado “Domingo da Família” de janeiro (um “domingo temático”) uma duplicação questionável.
A família de Nazaré e as famílias
Uma dificuldade para as famílias de hoje é considerar a perfeição da família de Nazaré como algo distante e inatingível. Noivos e casais podem admirá-la, mas temem a grande distância que os separa daquele ideal. De fato, Maria e José são e não são uma família como as outras.
Eles vivem uma história que não deixa nada a desejar em comparação com as aventuras dos casais mais famosos da história: um amor fiel e forte diante do sofrimento, seja na experiência do nascimento do Menino em uma estrebaria, na fuga para o Egito, no desaparecimento de Jesus ou na incompreensão das pessoas.
Ao mesmo tempo, são profundamente diferentes: Maria é uma esposa afetuosa e cheia de ternura por José, ainda que José seja e não seja seu esposo. Também Jesus é e não é sua criatura, como mostram as palavras em que o Filho toma distância da filiação física («Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?», Mt 12,46-50), recordando aos pais qual é a sua vocação primária, e também a deles: ocupar-se das coisas do Pai.
Esse chamado é o que cada um dos três fez, conforme sua vocação própria. Maria acolhe e cuida do Filho porque aderiu à vontade do Pai. José, por sua vez, consagrou todos os seus projetos pessoais e toda sua vida a Maria e a Jesus, os tesouros confiados por Deus, que se tornam sua vocação e sua missão. Em Nazaré, cada um vive à sua maneira uma kenosis: José vive uma paternidade que surge da perda de sua paternidade; Maria, uma maternidade continuamente perdida e devolvida a Deus; e Jesus vive sua divindade no esconderijo da obediência e do trabalho.
Maria e José ensinam aos noivos que o matrimônio resulta de um misterioso entrelaçamento entre atração e vocação, e que uma não pode existir sem a outra. Os esposos serão tanto mais conscientes e felizes em sua missão quanto mais considerarem o matrimônio como uma verdadeira vocação, à qual são chamados indiretamente pelo evento do encontro com o companheiro ou companheira de vida, algo que parece casual, mas não é.
Olhando para Maria, não importa que os esposos desempenhem papéis específicos, que a mãe seja ativa em algum grupo paroquial ou que o pai seja diácono ou presidente de alguma associação. Pelo simples fato de irradiar o amor (diffusivum sui) que Cristo derrama em seus corações, eles se tornam “cristóforos”. A Escritura nos diz que Deus se faz presente onde dois se amam em seu nome, atraído pelo amor deles, unindo-os indissoluvelmente, como fez com Maria e José: «Onde dois ou três estão reunidos em meu nome…» (Mt 18,20).
Um dos segredos de Nazaré é que a unidade não elimina as diferenças, mas, ao contrário, torna-se fonte de enriquecimento mútuo. Maria, mesmo vivendo com e para aqueles que lhe foram confiados, segue um caminho diferente de José e de Jesus. Embora se fale, com razão, do “evangelho de Maria“, cada palavra dita por ela tem uma ressonância distinta daquela de Jesus, e sua vida cotidiana é marcada por tempos e ocupações próprios, assim como seu fim terreno e sua assunção ao céu. O que aconteceu em Nazaré pode continuar acontecendo nas famílias de hoje: Jesus oferece o amor divino a uma família nascente, renova-a ao longo da vida, transformando a água em “vinho novo”, reacende a comunicação apagada, desperta o prazer sempre novo de estar juntos e faz experimentar, como os dois discípulos de Emaús, um “fogo”, uma presença santificadora.
Na família, os momentos especiais são aqueles em que todos se reúnem em unidade, com a mãe e o pai ao redor da mesa para celebrar. Da mesma forma, Maria continuamente reúne a família dos filhos de Deus, que também são seus filhos. Na cena de Pentecostes, sua presença é fundamental para a comunidade dos discípulos: «Eram assíduos e unânimes na oração, com algumas mulheres, com Maria, a mãe de Jesus, e com seus irmãos» (At 1,14). Esse «cum Maria» evidencia um primado substancial, sua capacidade de reunir na unidade (para Santo Agostinho, Maria é a “Mãe da unidade”): não apenas ao harmonizar diferenças de idade, gênero e formação cultural, mas também, profeticamente, as diferentes confissões e religiões e, em última análise, toda a humanidade. Para que Maria seja de fato Rainha — não como uma expressão retórica, mas efetivamente —, é necessário que os filhos e os povos retornem a Ela, como já profetizado por Isaías: «Levanta os olhos e olha ao redor: todos os teus filhos estão reunidos e vêm de longe» (Is 60,4). Esses são os filhos que Jesus lhe devolve, quase como compensação pela perda do Filho, tal como no episódio da ressurreição do filho da viúva de Naim, que Jesus restitui à mãe inconsolável.
Maria e José mostram aos esposos crentes que o matrimônio exige uma maturidade básica, que possibilita o dom de si ao outro. Apenas duas pessoas distintas, dignas e capazes de se dedicar diariamente a um projeto compartilhado podem realmente se unir. Nazaré quebra paradigmas, contestando tanto o conceito de familismo, que é fragmentado para ser reconstruído sobre bases cristãs, quanto um espiritualismo gnóstico efêmero. A afetividade, a ternura e o cuidado com o corpo do outro são aspectos cotidianos em Nazaré e não contrastam em nada com a elevação da missão confiada a cada um dos três.
A casa de Nazaré é um pequeno e escondido paraíso na terra. Por isso, almeja-se que a Igreja seja uma “extensão da casa de Nazaré”. A necessidade de dar um rosto mariano à Igreja estimula a conceber uma eclesiologia mais familiar, menos institucional e jurídica, na qual todos — e não apenas as mulheres — se sintam chamados a ser como Maria, construtores de unidade. Maria destaca e anuncia aquela singular união entre céu e terra, que, através dela, convoca a humanidade a um relacionamento de perfeita e digna reciprocidade no amor. Tudo o que Jesus diz sobre a Igreja, Ele diz primeiramente sobre Maria, arquétipo da esposa nas núpcias entre Deus e a humanidade. Em particular, assim como um esposo dá plenos poderes à esposa, também Deus espera com amor suas decisões, desejando conformar-se a elas. Pode-se dizer que, em certo sentido, Jesus, em sua “loucura de amor“, submete-se à sua esposa ao prometer tornar válido no céu aquilo que a Igreja selar na terra, ligando e desligando conforme ela determinar.
Conclusão
A família de Nazaré é mais do que um ideal a ser contemplado: ela é uma realidade teológica que revela o projeto de Deus para as famílias. Em José, Maria e Jesus, encontramos uma comunhão de pessoas que, mesmo enfrentando as adversidades mais duras, viveram na obediência à vontade divina, tornando-se modelo de santidade e entrega total. Maria acolhe a maternidade como missão dada pelo Pai, José renuncia aos próprios projetos para ser fiel à vocação de guardião, e Jesus manifesta sua divindade no silêncio e na obediência filial. Juntos, ensinam que a vida familiar é um caminho de santificação.
Esse exemplo fala diretamente às famílias de hoje. A unidade de Nazaré não elimina as diferenças, mas as harmoniza em uma comunhão que enriquece a todos. Essa dinâmica inspira as famílias a viverem sua vocação como reflexo da Trindade: uma comunhão de amor, onde cada membro, em suas particularidades, contribui para o bem do outro. Além disso, a kenosis vivida em Nazaré — a renúncia por amor — revela que a verdadeira grandeza de uma família está na capacidade de cada um se doar para os outros.
Para a vida prática, a mensagem de Nazaré é clara: o matrimônio e a vida familiar não são apenas instituições humanas, mas vocações divinas que exigem entrega, maturidade e abertura à graça. Assim como em Nazaré, as famílias são chamadas a serem lugares onde Cristo está presente, renovando o amor, curando as feridas, reacendendo a esperança e transformando o ordinário em algo extraordinário.
Ao olhar para a família de Nazaré, cada leitor é convidado a fazer de sua casa um reflexo dessa comunhão divina. Que o exemplo de Maria, José e Jesus inspire decisões diárias, cultivando lares onde o amor de Deus seja a fonte e o sustento de tudo. Como diz a Escritura: «Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a constroem» (Sl 127,1). Que Nazaré seja um farol que ilumine o caminho das famílias rumo à sua vocação celestial.
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