A História esquecida da Consagração ao Coração Imaculado de Maria pelos Papas do sec. XX

Nas suas aparições, Maria refere-se substancialmente ao Evangelho e aos seus valores, como a oração, a conversão, a Eucaristia, a aceitação da cruz, a solidariedade reparadora para com os pecadores.

De uma forma geral nas várias aparições da história contemporânea podemos concluir alguns aspectos gerais que nas Aparições de Fátima se tornam concretas: 

a) a entrega de práticas de piedade, oração e conversão com Nossa Senhora de Fátima passa a uma espiritualidade autêntica, condensada na devoção e consagração ao seu Imaculado Coração; 

b) de uma visão puramente espiritual, Nossa Senhora de Fátima passa para uma perspectiva histórica e política, que fala de guerras e paz e foca no fenômeno mais longo e terrível do século XX: a Rússia comunista; 

c) da solicitude pelo presente da Igreja e do mundo, Nossa Senhora de Fátima passa à solicitude pelo futuro e entrega aos pastorinhos o famoso segredo nas suas três partes; 

d) de algumas aparições (18 em Lourdes) Nossa Senhora de Fátima prolonga durante quase um século o seu diálogo com a humanidade através da irmã Lúcia (nascida a 30 de Março de 1907 – falecida a 13 de Fevereiro de 2005), favorecida por outras aparições em Pontevedra e Tuy que explicam e completam a mensagem dada aos três pastorinhos; 

e) de uma influência restrita passamos a uma influência universal sobre a piedade dos fiéis e mesmo dos bispos e papas, e em particular de João Paulo II que atribui a fuga do perigo de morte no atentado de 13 de maio de 1981 à intervenção de Nossa Senhora de Fátima

Depois de abordarmos de forma sucinta, os pedidos, as concretizações, os eixos espirituais que normalmente acompanham os peregrinos do Santuário de Fátima colocamos agora o nosso olhar para a Consagração ao Imaculado Coração de Maria nos vários Papas. 

O silêncio de Pio XI (1922-1939)

Os Bispos portugueses pediram ao Papa Pio XI que ele consagrasse a Rússia aos Santíssimos Corações de Jesus e Maria, sublinhando que se tratava de um pedido das aparições de Fátima, a resposta foi um absoluto silêncio como resposta devido à tradição de reserva da Santa Sede sobre as revelações privadas.  

A sensibilidade de Pio XII (1939-1958)

Sobre a posição de Pio XII, Lúcia lhe escreveu várias vezes para lhe dizer que “chegou o momento em que Deus pede ao Santo Padre que faça, em união com todos os bispos do mundo, a consagração da Rússia ao Imaculado Coração, prometendo salvá-la por este meio». 

Algumas palavras desta carta de 24 de outubro de 1940, precisamente as referentes aos bispos, foram omitidas na carta de 2 de dezembro do mesmo ano por sugestão dos superiores para facilitar a aceitação do pedido no Vaticano. Pio XII mostrou-se sensível a Fátima consagrando a santa Igreja e o mundo inteiro em 31 de outubro de 1942 e repetindo-o solenemente em 8 de dezembro do mesmo ano. Em 15 de dezembro de 1951 Lúcia confirmou o que já havia expressado, a saber, que o pedido de Nossa Senhora sobre a Rússia não foi atendido.

Recordemos que naquele preciso momento o contexto de Pio XII era de na impossibilidade prática de fazer uma consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, porquê?

Cismático como unidade religiosa porque são ortodoxos, marxista como unidade política porque são comunistas, a Rússia não poderia ser consagrado pelo Papa, sem que esse ato tomasse um rumo desafiador, tanto no que diz respeito à hierarquia separada patriarca de Moscou quanto à União das repúblicas soviéticas que após a IIª Guerra constituíam um bloco unido. Isso tornou a consagração praticamente impossível. É claro que se trata aqui apenas de uma impossibilidade moral de consagração, pelas reações que normalmente deveria suscitar.

No entanto, Pio XII, em 7 de julho de 1952, não hesitou em consagrar de maneira muito especial todos os povos da Rússia ao Imaculado Coração e na encíclica Ad coeli reginam (11 de outubro de 1954) ordena aos bispos no mesmo dia (31 de Maio instituição da Festa de Nossa Senhora como Rainha) se renove a consagração do gênero humano ao seu coração imaculado. Tudo isso nos incute grande esperança de que há de surgir uma nova era, iluminada pela paz cristã e pelo triunfo da religião.

Um elemento esquecido neste documento é a tentativa, sem entrar em rupturas diplomáticas, de lançar um apelo aos povos soviéticos:

Em algumas regiões da terra, não falta quem seja injustamente perseguido por causa do nome cristão e se veja privado dos direitos divinos e humanos da liberdade. Para afastar tais males, nada conseguiram até hoje justificados pedidos e reiterados protestos. A esses filhos inocentes e atormentados volva os seus olhos de misericórdia, cuja luz dissipa nuvens e serena tempestades, a poderosa Senhora dos acontecimentos e dos tempos, que sabe vencer a maldade com o seu pé virginal. Conceda-lhes poderem em breve gozar a devida liberdade e cumprir publicamente os deveres religiosos. E, servindo a causa do Evangelho – com o seu esforço concorde e egrégias virtudes, de que no meio de tantas dificuldades dão exemplo – concorram para o fortalecimento e progresso das sociedades terrestres.

A timidez de São João XXIII (1958-1963)

Quanto ao Papa Roncalli, apesar de ser uma alma simples sempre aberta às sugestões celestiais, a sua formação iluminista o levou a uma grande relutância quanto às consagrações ao Sagrado Coração ou ao Coração Imaculado de Maria. Quanto ao segredo de Fátima, João XXIII tinha-o nas mãos a 17 de Agosto de 1959 e leu-o poucos dias depois com o seu confessor, Mons. Alfredo Cavagna, e com o tradutor português Mons. Tavares. O conteúdo foi comunicado aos chefes da Secretaria de Estado e do Santo Ofício e a outros, inclusive Cardeal Grégoire-Pierre XV Agagianian  e Mons. Loris Capovilla. O papa não fez nenhum comentário e preferiu não revelá-lo, deixando essa tarefa para seus sucessores. De acordo com o testemunho do Pe. Alonso, João XXIII teria declarado: Isto não diz respeito aos anos do meu pontificado.

A coragem de São Paulo VI (1963-1978)

Em pleno Concílio Vaticano II, concluindo a terceira sessão (21 de novembro de 1964), Paulo VI renovou a consagração de “todo o gênero humano à proteção da Rainha do Céu”, com referência a Fátima e o Imaculado Coração de Maria. 

Ouçamos as palavras:

Enquanto em ardente prece volvemos a Nossa alma para a Virgem, a fim de que abençoe o Concílio Ecumênico e a Igreja toda, apressando a hora da união entre todos os cristãos, o Nosso olhar abre-se para os horizontes sem fim do mundo inteiro, objeto das atenções mais vivas do Concílio Ecumênico, e que o Nosso predecessor Pio XII, de veneranda memória, não sem inspiração do alto, solenemente consagrou ao Coração Imaculado de Maria. Esse ato de consagração julgamos oportuno recordá-lo hoje de modo particular. Para este fim, resolvemos enviar proximamente, por meio de uma missão especial, a Rosa de Ouro ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima, tão caro não só ao povo da nobre nação portuguesa —  sempre, porém hoje particularmente, a nós caro — como também conhecido e venerado pelos fiéis de todo o mundo católico. Destarte, também Nós pretendemos confiar aos cuidados da celeste Mãe a inteira família humana, com os seus problemas e as suas ânsias, com as suas legítimas aspirações e as suas ardentes esperanças.

Não existe uma menção à Rússia por respeito aos observadores russos convidados para o Concílio. 

Um acontecimento de grande significado histórico é a peregrinação de São Paulo VI a Fátima em 13 de maio de 1967 a convite do episcopado português. A finalidade religiosa é colocada em primeiro plano porque o Papa pretende invocar a intercessão de Maria em favor da paz interna da Igreja, da paz civil e social no mundo, da paz da humanidade (03/05/1967).

Na mesma data Paulo VI publica a exortação apostólica Signum magnum onde convida todos os filhos da Igreja a consagrarem-se pessoalmente novamente ao Imaculado Coração da Mãe da Igreja. No entanto, Paulo VI tem o mérito de ir contra a maré prestando atenção aos acontecimentos carismáticos na Igreja, como o acontecimento de Fátima com as aparições de Maria aos pastorinhos que constitui a ocasião da Signum magnum e a sua peregrinação ao santuário português.

Longe de se deter na exterioridade de um gesto, ainda que sagrado e solene, o Papa capta o cerne da mensagem de Fátima quando nos convida a legitimar e personalizar a consagração da Igreja e do homem a Maria, Mãe de Deus, e ao seu Imaculado Coração, realizado por Pio XII em 1942 e renovado por ele em concílio em 1964 como acabamos de ler no texto supracitado.

Nesta fase, a superação do gesto magistral ou coletivo é levado pela passagem à assimilação pessoal do ato de entrega que resulta em uma vida consequente de adesão cada vez maior à vontade salvífica do Pai e à identificação com Maria, serva do Senhor e modelo de virtude.

Isso significa não se deter na recitação de uma fórmula, mesmo que isso constitua o mais nobre ato de culto, mas passar ao compromisso da vida: ao pronunciamento de si como diria K. Rahner, à fidelidade aos compromissos decorrentes do batismo, diria São Luís G. de Montfort.

São João Paulo II, o Papa de Fátima (1978-2005)

A João Paulo II, o extraordinário Papa de Maria no atentado de 13 de Maio de 1981, quando a pistola do jovem turco Alì Agcà o atinge no abdômen com duas balas, devemos dois importantes gestos fundamentais em relação a Fátima: a consagração do mundo envolvendo todos os bispos com referência clara, embora não explícita, à Rússia (25 de março de 1985) e a revelação da terceira parte do segredo (13 de maio de 2000).

Em 13 de maio de 1982, na peregrinação de ação de graças a Maria por ter salvado sua vida, o papa realiza um ato de consagração a Maria em que a referência à Rússia se manifesta tanto na intenção declarada de renovar a consagração realizada por Pio XII em 1942 e em 1952:  consagramos-vos de modo especial os homens e as nações que necessitam particularmente desta entrega e desta consagração. No mesmo ato existe a preocupação do Papa em realizá-lo “em união com todos os pastores da Igreja e anteriormente o Cardeal Casaroli anunciou aos bispos em uma carta datada de 20 de abril de 1982 que o Santo Padre tinha a intenção de renovar, em união com todos os bispos do mundo, os dois atos praticados por Pio XII.

João Paulo II, tendo decidido proceder a uma renovação do ato de consagração no dia da Anunciação de 1984, enviou uma carta aos bispos em 8 de dezembro de 1983, pedindo-lhes que renovassem este ato junto comigo, escolhendo o modo que cada um vai considerar mais adequado. O significado deste ato é visto pelo papa como: profissão de fé no poder salvador infinito da Redenção […] por meio do imaculado Coração da Mãe de Deus, que de maneira muito particular experimentou esse poder salvador.

A consagração é realizada pelo papa em 24 de março de 1984 no adro de São Pedro em frente à imagem de Nossa Senhora de Fátima, transportada para a ocasião de seu santuário, é importante não só pela solenidade do rito, mas também por algumas pequenas mudanças, mas significativas, trazidas ao texto recitado em Fátima: em primeiro lugar, uma forte ênfase na colegialidade do ato e a menção daqueles povos que esperam o nosso ato de consagração e entrega

O que significa hoje o Papa Francisco consagrar a Ucrânia e a Rússia ao Coração Imaculado de Maria?

Vejamos o que diz o Diretório de Piedade Popular e Liturgia

174. No dia seguinte à solenidade do Sacratíssimo Coração de Jesus, a Igreja celebra a memória do Imaculado Coração de Maria. A continuidade das duas celebrações já é em si um sinal litúrgico de sua estreita ligação: o mysterium do Coração do Salvador se projeta e reverbera no Coração da Mãe, que também é sócia e discípula. Assim como a solenidade do Sagrado Coração celebra de forma sintética os mistérios salvíficos de Cristo e os reconduz à sua fonte – o Coração, aliás -, a memória do Imaculado Coração de Maria é uma celebração global da associação “cordial” da Mãe com a obra salvífica do Filho: da Encarnação, à morte e ressurreição, ao dom do Espírito.

A devoção ao Imaculado Coração de Maria tornou-se muito difundida após as aparições da Virgem em Fátima em 1917. Em seu 25º aniversário, em 1942, Pio XII consagrou a Igreja e a humanidade ao Imaculado Coração de Maria, e em 1944 a festa do Imaculado Coração de Maria se estendeu a toda a Igreja.

204. Ao longo da história da piedade, encontram-se várias experiências pessoais e coletivas de consagração-entrega- oferecimento à Virgem (oblatio, servitus, commendatio, dedicatio). Elas se refletem nos manuais de oração e nos estatutos das associações marianas, nos quais encontramos fórmulas de “consagração” e orações à vista ou em memória dela. 

No que diz respeito à prática piedosa da “consagração a Maria”, não são raras as expressões de apreço dos Romanos Pontífices e são conhecidas as fórmulas que a recitam publicamente.

Um conhecido mestre da espiritualidade subjacente a esta prática é São Luís Maria Grignion de Montfort, que propôs aos cristãos a consagração a Cristo pelas mãos de Maria, como meio eficaz para viver fielmente os compromissos batismais.

À luz do testamento de Cristo (cf. Jo 19,25-27a), o acto de consagração é de facto o reconhecimento consciente do lugar singular que Maria de Nazaré ocupa no mistério de Cristo e da Igreja, do seu  exemplar e universal testemunho evangélico, da confiança na sua intercessão e na eficácia do seu patrocínio, da múltipla função materna que desempenha, como verdadeira mãe na ordem da graça, em favor de todos e de cada um de seus filhos.

No entanto, note-se que o termo consagração é usado com certa amplitude e impropriedade: diz-se, por exemplo, consagrar as crianças a Nossa Senhora, quando na realidade se pretende apenas colocar as crianças sob a proteção da Virgem e pedir-lhes a sua benção materna. Também entendemos a sugestão vinda de muitas partes para usar outros termos, como incumbência ou doação, em vez de consagração. De fato, em nosso tempo, o progresso da teologia litúrgica e a consequente necessidade de um uso rigoroso dos termos sugerem reservar o termo consagração à oferta de si que tem Deus como termo, totalidade e perpetuidade como características, como garantia da intervenção da Igreja, tendo como fundamento os sacramentos do Batismo e da Confirmação.

De qualquer forma, em relação a esta prática é necessário instruir os fiéis sobre sua natureza. Embora apresente as características de um dom total e perene: é apenas analógico no que diz respeito à consagração a Deus; deve ser fruto não de uma emoção passageira, mas de uma decisão pessoal, livre, amadurecida no contexto de uma visão exata do dinamismo da graça; deve ser expresso corretamente, em uma linha, por assim dizer, litúrgica: ao Pai por meio de Cristo no Espírito Santo, implorando a intercessão gloriosa de Maria, a quem se confia totalmente, observando fielmente os compromissos batismais e vivendo em atitude filial em direção a ele; deve ser realizado fora da celebração do Sacrifício Eucarístico, pois é um gesto de devoção que não pode ser equiparado à Liturgia: a entrega a Maria distingue-se substancialmente de outras formas de consagração litúrgica.

Os efeitos do ato solicitado por Nossa Senhora não deixarão de se concretizar, ainda que os tempos de Deus não coincidam com as nossas medidas.

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A primeira oração dirigida ao coração de Maria surge no século XII: o beneditino alemão Egberto de Schönau (m. 1184), irmão da famosa vidente Isabel de Schönau (m. 1165), deixou-nos uma oração que não se dirige apenas a Maria, mas ao seu coração, que de certa forma se personifica:

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