Coração de Maria na Bíblia
Folheando um bom Léxico de Palavras da Sagrada Escritura, chama a atenção a multiplicidade de sentidos figurativos, expressões idiomáticas, expressões populares e até provérbios que têm a palavra “coração” como ponto de referência. A noção de coração também ocupa um lugar central na religião, misticismo e poesia de todos os povos.
Na linguagem comum das pessoas do nosso tempo, encontramos frequentemente o coração e o amor combinados, que se influenciam segundo uma hierarquia de matizes que privilegia frequentemente e voluntariamente a dimensão sentimental e emocional, com particular atenção à esfera do mundo feminino: o coração evoca sobretudo a vida amorosa; existem os diários do coração, casos do coração, e o coração tem razões que a razão desconhece como diria Blaise Pascal. Mas também falamos do coração como a parte central de algo: o coração da noite, o coração do inverno, o coração do problema e assim por diante. O coração, portanto, evoca uma multiplicidade de significados.
Se olharmos agora para o nosso tema específico veremos que nas últimas décadas a devoção ao Coração de Maria teve a mesma aceitação que a devoção ao Coração de Jesus, apesar do progresso dos estudos bíblicos e de algumas intervenções esclarecidas pelo Magistério Eclesial, ainda é difundida a opinião de que as devoções são muito sentimentais, com tendências ao intimismo e de certa forma teóricas. Alguns também se sentem desconfortáveis diante da continuação de discursos teologicamente questionáveis sobre reparação e as várias promessas associadas a essas devoções. De tudo isso deduzimos a necessidade de esclarecer antes de tudo o que entendemos por coração quando falamos do Imaculado Coração de Maria.
O coração de Maria na Bíblia
O coração na Bíblia é um símbolo teológico rico em múltiplos significados. No Antigo Testamento temos no coração as palavras lēb e lēbāb. A tradução dos LXX traduz lēb principalmente com kardía.
Para a cultura hebraica lēb representa o centro da vida espiritual, a interioridade do homem com seus vários sentimentos:
coragem:
«e exaltou-se o seu coração nos caminhos do Senhor e, ainda mais, tirou os altos e os bosques de Judá»
(2 Cr 17,6);
alegria:
«visto que não serviste ao Senhor com alegria e bom coração, na abundância em que viveste»
(Dt 28,47),
dor:
«minhas entranhas! Minhas entranhas! Sofro! Oh! As fibras do meu coração! O coração me bate, não me posso calar! Ouço o som das trombetas e o fragor da batalha»
(Jr 4,19),
afeição:
«então veio um mensageiro a Davi, dizendo: O coração de cada um em Israel segue a Absalão»
(2 Sam 15,13);
ira:
«para que o vingador do sangue não vá após o homicida, quando se enfurecer o seu coração, e o alcançar, por ser comprido o caminho, e lhe tire a vida; porque não é culpado de morte, pois o não odiava antes»
(Dt 19,6);
desagrado:
«meus servos cantarão na alegria de seu coração, e vós vos lamentareis com o coração angustiado, rugireis com a alma em desespero»
(Is 65,14).
O coração é a sede do entendimento e do conhecimento:
«vou satisfazer o teu desejo. Eu te dou um coração tão sábio e inteligente como nunca houve outro igual antes de ti e nem haverá depois de ti»
(1Rs 3,12),
mas também da insensatez e dos maus pensamentos:
«a língua do justo é prata finíssima; o coração dos maus, porém, para nada serve»
(Pro 10,20).
Do coração, então, vem o impulso de trabalhar:
«Moisés chamou Beseleel, Ooliab e todos os homens prudentes que o Senhor tinha dotado de inteligência, todos os que eram impelidos pelo seu coração a empreender a execução desse trabalho»
(Ex 36,2),
de planejar e de querer:
«ainda que ele não cuide assim, nem o seu coração assim o imagine; antes no seu coração intenta destruir e desarraigar não poucas nações» (Is 10,7).
(Is 10,7).
O coração, porém, mais do que as funções individuais indica no Antigo Testamento o homem com todos os seus impulsos, enfim, o homem em sua totalidade, toda a personalidade; assim, por exemplo, nos salmos:
- «os pobres comerão e serão saciados; louvarão o Senhor aqueles que o procuram: vivam para sempre os nossos corações» (Sal 21,27);
- «meu coração e minha carne podem já desfalecer, a rocha de meu coração e minha herança eterna é Deus» (Sal 72,26);
- «minha alma desfalecida se consome suspirando pelos átrios do Senhor. Meu coração e minha carne exultam pelo Deus vivo» (Sal 84,3).
No coração, portanto, o homem se posiciona diante de Deus, na fé:
(Is 51,7),
«ouvi-me, vós que conheceis a justiça, povo meu, em cujo coração está a minha doutrina: não temais os insultos dos homens, não vos deixeis abater pelos seus ultrajes»
(Is 29,13).
como no endurecimento:
«o Senhor disse: esse povo vem a mim apenas com palavras e me honra só com os lábios, enquanto seu coração está longe de mim e o temor que ele me testemunha é convencional e rotineiro»
(Sl 51,12.19).
O distanciamento de Deus e o endurecimento do coração são superados por meio da conversão a Deus que se realiza no coração:
«ó meu Deus, criai em mim um coração puro, e renovai-me o espírito de firmeza. […] Meu sacrifício, ó Senhor, é um espírito contrito, um coração arrependido e humilhado, ó Deus, que não haveis de desprezar»
No Novo Testamento, o uso da palavra kardía coincide com a concepção do Antigo Testamento. Com efeito, a ideia do coração como sede da vida interior, núcleo íntimo da pessoa onde Deus se dá a conhecer ao homem, é ainda mais claramente expressa nos textos do Novo Testamento do que nos do Antigo Testamento. Devemos também notar a proximidade, no Novo Testamento, entre os conceitos de kardía e noûs que significa intelecto ou mente. Coração e mente são conceitos que podem estar em paralelo:
(2 Cor 3,14)
«em consequência, a inteligência deles permaneceu obscurecida. Ainda agora, quando lêem o Antigo Testamento, esse mesmo véu permanece abaixado, porque é só em Cristo que ele deve ser levantado»
ou também se repetir como sinônimos:
(Fil 4,7)
«e a paz de Deus, que excede toda a inteligência, haverá de guardar vossos corações e vossos pensamentos, em Cristo Jesus»;
noûs , porém, acentua kardía o aspecto do saber, conhecer. Podemos, portanto, concluir afirmando que tanto no Antigo como no Novo Testamento, o coração é o lugar onde o homem encontra Deus, encontro que se torna plenamente ativo no coração humano do Filho de Deus.
Quando falamos explicitamente do coração de Maria:
(Lc 2,19)
«Maria, por sua vez, conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração»
e
(Lc 2,51).
a mãe meditava todas estas coisas no seu coração»
As palavras conservar e meditar traduzem duas palavras gregas que significam respectivamente: conservar e reunir (symballo), reunir e meditava (diatereo). Assim, de acordo com os dois contextos, o significado é que Maria, lendo as Escrituras, que predisseram o que presenciou, lembrou-se de todas aquelas palavras: mais do que das coisas, da realidade. Ela leu as profecias. Ela viu algumas delas acontecerem diante de seus olhos. E agora, no fundo de sua consciência, em seu coração, ele compara os fatos.
Quando falamos do Coração de Maria, estamos a usar o sentido bíblico. Como vimos, coração na linguagem da Sagrada Escritura significa a totalidade da pessoa humana, ao contrário das faculdades individuais e momentos individuais da própria pessoa. Coração de Maria significa o seu ser íntimo e irrepetível; o centro da existência humana, a confluência da razão, da vontade, do temperamento e da sensibilidade. Só no coração a pessoa encontra a sua unidade e orientação interior da mente e do coração, da vontade e da afetividade.
A tradição espiritual da Igreja insiste […] no coração no sentido bíblico de ‘profundidade do ser’, onde a pessoa decide ou não por Deus (Catecismo Igreja Católica, 368). O coração é, portanto, a alma indivisa, com a qual Maria amou a Deus e seus irmãos e se dedicou inteiramente à obra da salvação do Filho. A devoção ao Imaculado Coração de Maria é, portanto, uma maneira de abordar esta atitude do coração, na qual o fiat – Seja feita a tua vontade do Pai nosso – torna-se o centro informador de toda a existência.
Onde e como se aplica a contemplação em meio ao “conservar e meditar?
Ave Maria, para lhe responder a essa questão será necessário definir a contemplação como a entrada do contemplante na realidade contemplada. A Anunciação de Maria é a entrada criatural na vida Intratrinitária contemplada. De forma total, perfeita, singular e irrepetível. Assim sendo Maria como a contemplante é aquela que é introduzida no mistério a partir da resposta de fé na Anunciação.