Orígenes e a teologia da esperança

Apesar de Orígenes (c. 184 – c. 253) ser amplamente conhecido por seus temas de crescimento interior e progresso espiritual do verdadeiro gnóstico, sua reflexão sobre a esperança (ἐλπίς) merece especial atenção. No contexto das polêmicas contra os filósofos pagãos e as críticas dirigidas à fé cristã, Orígenes desenvolveu uma visão profundamente cristã acerca da esperança, articulando a confiança na ressurreição e na graça divina com a coragem ante o martírio.

Neste artigo, analisaremos os principais argumentos que Orígenes emprega para defender a esperança cristã em obras como Contra Celsum e Exhortatio ad Martyrium. Veremos como ele se apoia tanto na tradição judaico-cristã quanto em convergências filosóficas (por exemplo, com Pitágoras e Platão) para demonstrar que a fé cristã na vida futura não é ingênua, mas fundamento sólido para a prática religiosa e moral.

Contexto e desafios: Orígenes contra Celsum

Em sua obra Contra Celsum, Orígenes responde às acusações do filósofo pagão Celsus, que zombava da doutrina cristã da ressurreição como uma “esperança de vermes”:

Celsus, citado em Orígenes, Contra Celsum 5,14
“Como podem estes cristãos apegar-se a uma esperança tão tola, de que corpos se levantarão depois de apodrecerem como alimento dos vermes?”

Orígenes rebate ao afirmar que a esperança em uma vida futura já era central na tradição judaica, que crê no Criador e em Suas promessas:

Orígenes, Contra Celsum 3,3 [SC 136, 18,9]
“Eles [os judeus] sustentam sua fé no Criador do mundo e nas palavras proféticas que anteveem a restauração final de todas as coisas.”

Celsus também acusava o cristianismo de atrair pessoas moralmente fracas, sob o pretexto de uma “vã esperança”:

Orígenes, Contra Celsum 3,78–81 [174–184]
“Se lhes parece que tantos se voltam para o cristianismo por promessa vã de recompensa, o que dizer dos epicuristas, que não possuem esperança alguma, negando a imortalidade?”

O autor cristão inverte o argumento, demonstrando que até filósofos como Pitágoras e Platão acreditavam na imortalidade. Porém, Orígenes ressalta que a vida futura é resultado da adesão ao Deus verdadeiro, revelado por Jesus Cristo:

Orígenes, Contra Celsum 3,81 [182–184]
“Os que depositam a esperança em Deus, e não em vãos raciocínios, são os que se abrem à herança da vida eterna.”

A esperança como confiança e graça

Para Orígenes, a esperança não se apoia em conjecturas humanas, mas na ação graciosa de Deus:

Orígenes, Contra Celsum 4,27 [248,14]
“Os cristãos, por sua fé na Palavra de Deus e no caminho que dEla decorre, têm as melhores esperanças vindas de Deus.”

Essa confiança se traduz na dependência total dEle:

Orígenes, Contra Celsum 8,60 [SC 150, 310,17]
“Eles pedem ajuda somente a Deus, confiando que Ele é a fonte de todo bem.”

Além de um simples assentimento intelectual, a esperança envolve tanto a oração quanto a obediência:

Orígenes, Contra Celsum 8,25–27 [228–234]
“A oração liga o fiel à vontade divina, e a obediência confirma a esperança; pois apenas quem se submete às ordens de Deus pode esperar receber dEle auxílio.”

Esperança e martírio

Uma das obras em que Orígenes mais exalta a esperança é a Exhortatio ad Martyrium, escrita para encorajar cristãos perseguidos:

Orígenes, Exhortatio ad Martyrium 1 [GCS Orig. 1,3]
“Para aqueles que suportam as tribulações, está reservada ‘esperança sobre esperança’.”

Ele retoma passagens bíblicas (Romanos 5,3–5) para vincular a perseverança à esperança:

Orígenes, Exhortatio ad Martyrium 41 [38–39]
“A paciência na adversidade produz esperança, e essa esperança não decepciona, pois está alicerçada na promessa divina.”

Orígenes recorda os irmãos macabeus, que, diante de tormentos, confiavam na ressurreição e proximidade de Deus:

Orígenes, Exhortatio ad Martyrium 23–25 [20–22]
“Assim como eles perseveraram até a morte por saberem que Deus ressuscita, nós devemos manter viva a mesma esperança.”

Ele também apresenta Jesus como modelo supremo de esperança, sobretudo na cena do Getsêmani, onde Cristo não se deixou dominar pelo medo:

Orígenes, Exhortatio ad Martyrium 29 [25]
“Em seu coração, não havia pavor, mas total confiança em Deus, indicando-nos que o verdadeiro Filho vive da esperança inabalável no Pai.”

Conclusão

A reflexão de Orígenes sobre a esperança, embora pouco desenvolvida em comparação a outros temas em seus escritos, assume uma importância notável quando se observa sua resposta às críticas pagãs e sua preocupação em sustentar os cristãos diante das perseguições. Contra as acusações de ingenuidade ou de “vã esperança”, Orígenes reivindica a firmeza doutrinária e a profundidade espiritual da fé na ressurreição. Nesse sentido, ele alinha-se à tradição judaico-cristã, que reconhece a ação histórica de Deus e Suas promessas, e encontra pontos de convergência com filósofos antigos que também acreditavam em alguma forma de imortalidade.

Além disso, Orígenes demonstra que a esperança cristã não é apenas um conceito teórico, mas uma força motivadora para a vida de oração, a obediência a Deus e, sobretudo, a perseverança nos tempos de perseguição. A Exortação ao Martírio traz esse aspecto de maneira vívida: nela, o autor exalta o exemplo dos irmãos macabeus e, ainda mais, de Jesus — tanto em Seu ensinamento quanto na vivência do sacrifício, apresentando-O como modelo supremo de quem depositou inteira confiança no Pai. Assim, a esperança não se limita a inspirar conforto individual, mas torna-se elemento central para sustentar a coragem e a fidelidade do cristão no testemunho público de sua fé.

Por fim, o pensamento de Orígenes ressalta que a esperança é essencial para a identidade cristã: ela projeta a vida na eternidade, sem desprezar a realidade presente, pois a graça e a bondade divinas já atuam agora, fortalecendo os fiéis. A esperança cristã, portanto, vai muito além de uma crença ingênua ou sem fundamento; ela é expressão de uma confiança integral no Criador, capaz de iluminar o caminho da paciência, do amor e da entrega total ao serviço de Deus em meio às maiores provações da história humana.

Quem espera em Deus não se rende às ameaças deste mundo, pois sabe que a vida verdadeira e eterna está nas mãos dAquele que tudo governa.”
(Orígenes, Exhortatio ad Martyrium 2)

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Responses

  1. Professor Daniel, como vai!?
    Posso estar incorreto no meu entender, mas Orígenes tem realmente seu peso na teologia cristã na figura de um grande escritor e defensor do Evangelho, mas ele foi um herege estoicista, crente do eudaimonismo. Mesmo vindo da escola de Amônio e seguidor de Zenão de Cítio, sua exposição em Contra Celsum é no mínimo curiosa pela simplicidade da defesa da resssureição, quase infantil. Por outro lado, a obra “Exhortatio ad Martyrium” em relação às raizes cristãs, é indispensável e insubstituível. De qualquer forma, e aproveitando o dia de São Felipe de Neri (hoje, 26-05), no meu entender, são obras e pessoas que caminham juntos na identificação de algum sofrimento em busca do reino dos Céus, um pela pregação da alegria que, convenhamos, não é fácil para quem vê um martírio iminente a se alegrar com as palavras de Neri, ou pela autoflagelação de Orígenes no casto sacrifício, quando pelo amor incondicional seria muito mais simples (hoje temos esta demonstração na Teologia do Corpo de São João Paulo II).
    Essas preposições em proporções quase extremas, não levariam aos novos cristãos do período da Igreja Primitiva em Orígenes, ou os cristãos do período pré-reformistas (prefiro chamar de pré-revolucionistas da Igreja) do século de Neri a se amarrarem nestes conceitos em busca de um entendimento novo sem custos e sacrifícios? (Tenho por base a atual situação da Igreja Católica Alemã). Um caminho fatal para a heresia?
    Finalizando, na Homilia “Inter Collectas ex Variis Locis” de Orígenes sobre Maria, não deveria estar mais explícita entre os católicos em todo caminho da história, como também hoje para apresentar a “normalidade” de Maria na história da fé? É um texto antigo, mas com a simplicidade de Maria e com teor didático que eu aplicaria na catequese da primeira eucaristia sem pestanejar.
    Muito obrigado pela oportunidade e um grande e fraternal abraço.
    José Rubens,

    1. Orígenes não pode ser classificado como “estoicista” no sentido estrito. Ele bebeu em diversas correntes helenísticas, sobretudo no Médio-Platonismo então dominante em Alexandria. Quando dialoga com o estoicismo (por exemplo, em Contra Celsum IV 14-15), ele o faz de modo crítico, rejeitando o fatalismo estóico e ressaltando a liberdade criada. A Igreja condenou algumas teses órigenianas no V Concílio de Constantinopla (553), mas nunca o rotulou de filósofo estoico nem o excluiu do cânon patrístico. Por isso São Gregório de Nissa, Santo Atanásio, os Cappadócios e, no Ocidente, Santo Hilário de Poitiers o citam como mestre da exegese.
      O termo εὐδαιμονία aparece em Orígenes, mas com sentido cristão: a verdadeira bem-aventurança consiste na visão de Deus e na conformidade com Cristo (Perì Archôn II 11, 7). Não se trata de autossuficiência racional, mas de participação na vida trinitária. Ele critica explicitamente o ideal estoico de impassibilidade desligada do amor («ἀπάθεια ἄνευ ἀγάπης λήγει εἰς ἀναισθησίαν» – Hom. in Ez. 6).
      Orígenes responde a Celsus, um polemista leigo, e precisa começar pelo kerygma. Nos livros V-VIII ele avança para questões metafísicas (identidade do corpo ressuscitado, continuidade pessoal, critério de justiça divina). O filósofo Plotino, leitor contemporâneo do tratado, reconheceu a densidade lógica da argumentação (Porfírio, Vita Plotini 3).
      Autocastração? A notícia vem de Eusébio (Hist. Eccl. VI 8). Eusébio registra que Orígenes mais tarde considerou o gesto precipitado. A legislação canônica posterior (Concílio de Niceia I, cân. 1) proscreveu tais práticas. Nada no corpus órigeniano prescreve a automutilação; pelo contrário, no Comentário a Mateus 15 ele desaprova qualquer mutilação literal de Mt 19,12.
      Orígenes e São Filipe Neri… Não se trata de “extremos”. Na Patrística, ascese é pedagogia do desejo, e alegria cristã floresce precisamente da purificação de paixões desordenadas. São Filipe Neri incorpora a agapê festiva do século XVI; Orígenes expressa a χαρὰ ἐν πνεύματι (alegria no espírito) do século III. Ambos convergem na mesma teologia do corpo que João Paulo II sistematizou: o dom total de si como caminho para a comunhão.
      No tempo de Orígenes, heresias perigosas (docetismo, valentinianismo) propunham salvação gnóstica “sem cruz”. Orígenes rebateu-as com 32 homilias sobre Josué e Juízes, insistindo que a vida cristã implica combate espiritual. Já no século XVI, Filipe Neri combateu o quietismo incipiente com a pedagogia da alegria e da caridade concreta em Roma. Em ambos os casos não há porta larga nem “gratuidade barata”, mas discipulado exigente.
      A Homilia Inter Collectas ex Variis Locis sobre Maria. O texto latino é uma recolha tardia de passagens marianas dispersas nas homilias sobre Lucas, consideradas autênticas pela crítica (PG 13,1903-1912). Orígenes chama Maria de τύπος da alma que concebe a Palavra e sublinha sua humildade cotidiana. Divulgá-lo na catequese é legítimo, mas convém contextualizar: o sermão não é dogmático, é mistagógico e mostra bem a “normalidade” de Maria.
      Reduzir Orígenes a “herege estoicista” empobrece um dos maiores exegetas cristãos. Seu legado — crítica textual, tipologia bíblica, teologia espiritual — permanece fecundo. Lido dentro da tradição viva da Igreja, ele não conduz ao erro, mas abre horizontes para a compreensão da Escritura, da dignidade do corpo e da esperança na ressurreição. A mesma tradição acolhe o carisma festivo de São Filipe Neri. Em vez de contrapô-los, vale reconhecer a catolicidade que abraça mística, razão, ascese e alegria na única busca do Reino.
      Mas tudo isto são pensamentos meus….