Realeza de Maria: fundamentos
Introdução
O reconhecimento da dignidade real de Maria faz parte do tesouro da fé da Igreja primitiva: o próprio arcanjo Gabriel pode ser considerado o primeiro arauto dessa dignidade. O título explícito de “Rainha” (com seu equivalente “Senhora-Domina”) é atestado desde os primeiros séculos do cristianismo pelo coro unânime das vozes da tradição patrística, litúrgica, homilética, popular e artística. As objeções de tipo sociológico ou psicológico hoje parecem menos fortes do que no passado: o magistério mariano dos papas, as orientações conciliares e as novidades no campo litúrgico trouxeram novamente a atenção para as Escrituras e a Tradição, levando a uma revisitação das razões, dos fundamentos e do significado de um título amplamente utilizado e ainda hoje empregado em formas relativamente novas. A manter viva a atenção à realeza de Maria, nos dias de hoje, contribui significativamente a piedade popular, ao mesmo tempo em que se percebem sinais sutis de retomada dos estudos sobre o tema.
A realeza de Maria na Palavra de Deus
O povo cristão sempre acreditou com razão, mesmo nos séculos passados, que aquela de quem nasceu o Filho do Altíssimo, que ‘reinará eternamente na casa de Jacó’ (Lc 1,32), (será) ‘Príncipe da Paz’ (Is 9,6), ‘Rei dos reis e Senhor dos senhores’ (Ap 19,16), acima de todas as outras criaturas de Deus, recebeu privilégios singulares de graça. Considerando os íntimos laços que unem a mãe ao filho, foi atribuído facilmente à Mãe de Deus uma preeminência régia sobre todas as coisas.” Assim diz a encíclica Ad Caeli Reginam, que ao apresentar as razões teológicas dessa prerrogativa mariana, se limita a utilizar as passagens escriturísticas relativas à maternidade régia. Três são as vias seguidas pelos estudiosos para oferecer o necessário suporte bíblico a uma doutrina que só foi questionada na época moderna: a busca de textos-prova, a dedução a partir de outras verdades claramente reveladas e o recurso à ‘tipologia’. Embora válidos e úteis, o enfoque histórico-salvífico se mostra mais acessível e proveitoso.
A tradição da Rainha Mãe na monarquia davídica
É reconhecida a fecundidade da tradição da gebîrâ e suas implicações teológicas no Evangelho de Lucas. Enraizada no contexto histórico-político do antigo Oriente Próximo, onde a figura institucionalmente relevante de rainha não era a esposa, mas sim a mãe, essa tradição oferece uma chave importante para interpretar algumas passagens do Novo Testamento. Após a concessão da instituição monárquica (1Sam 8), é com a dinastia davídica que Deus estabelece um vínculo único; para entender a importância da rainha-mãe do futuro Messias e rei davídico, é necessário considerar o papel jurídico-institucional das rainhas-mães dessa dinastia, que constituem uma espécie de antecipação, sem enfatizar as figuras históricas em si e levando em conta a diferença entre as expectativas e o cumprimento. Na corte davídica, a gebîrâ ou “Grande Senhora”, por razões ligadas à experiência religiosa do povo santo, tinha um papel importante e oficial: intervenha na designação do herdeiro, precedia em dignidade os ministros e altos funcionários, era associada ao governo do reino com uma autoridade secundária apenas à do filho (possuía trono e coroa), atuava como advogada do povo e como conselheira influente.
a) Passagens do Antigo Testamento – Is 7,14
Em um momento particularmente crítico para a vida do país, o Senhor oferece a Acaz um “sinal” extraordinário de benevolência: a ‘almâ (a “virgem”, nos LXX) dará à luz o herdeiro que assegurará continuidade e estabilidade ao reino. O significado do nome que a própria rainha-mãe dará a esse filho – Emanuel, que significa “Deus conosco” – refere-se diretamente à preservação da tradição dinástica (cfr. 2 Sam 7,8-16). A esperança parece ligada à “jovem mulher” sobre a qual é anunciada uma ação divina transcendente; Mi 5,2 confirma a profecia de Isaías: a salvação virá quando “aquela que deve dar à luz, der à luz” (cfr. Lc 2,6-7). Quando o “sinal” se torna plena realidade, como tal é também reconhecido: o evangelista Mateus declara cumprida a promessa divina com o nascimento de Jesus da “Virgem davídica”.
b) Passagens do Novo Testamento – Mt 1-2
No evangelho da infância de Mateus, Jesus é apresentado claramente no contexto do reino davídico e Maria é iluminada em seu papel de mãe do novo rei: aparece na genealogia (Mt 1,16) e no cumprimento declarado das profecias (Mt 1,23 cita Is 7,14); o fato de que o menino seja repetidamente apresentado junto com a mãe lembra o costume – atestado nos livros dos Reis – de registrar o nome da rainha-mãe ao lado do filho. Os motivos davídicos são evidentes no relato da visita dos magos: fala-se do “rei dos Judeus”, da homenagem prestada pelas nações, da “estrela”, de “Belém”; quando chegam, Maria está ao lado do Filho como a gebîrâ: é ela que entroniza o recém-nascido rei-messias e o apresenta à adoração “das nações”.
– Lc 1,26-38 – Prometida a um homem “da casa de Davi”, a Virgem é revelada pelo anjo como a eleita, por graça, para ser mãe do messias esperado, herdeiro do trono de “seu pai”. Jesus é anunciado como o rei davídico por excelência: será “grande” e “filho do Altíssimo” no sentido próprio e único pelo poder do Espírito Santo, que intervirá diretamente em sua concepção (Lc 1,31 alude a Is 7,14). – Lc 1,39-45 – Com o título de “mãe do meu Senhor” – e o mesmo temor reverencial demonstrado por Davi pela arca (cfr. 2Sam 6,9) – Isabel, além de reconhecer a senhoria messiânica do menino, saúda em Maria a “mãe do seu rei”: uma excelência e dignidade singulares.
– Ap 12 – A Mulher, que ocupa uma posição central na visão profética, é apresentada com um rico conjunto de símbolos que a qualificam como rainha-mãe; o trecho remete a Is 7,10.14 (este “sinal no céu” lembra aquele que Acaz é convidado a pedir), Gen 3,15.16 (cfr. Ap 12,17.2: aqui se cumpre a luta iniciada em Gen 3), Jo 19,25-27 e 16,20-21 (onde aparecem uma mulher, as dores de parto, o tema da hora). No Calvário, a mãe do Messias (e Rex Iudaeorum) é constituída mãe do discípulo fiel e ideal do evangelho; a Mulher do Apocalipse é mãe tanto do filho varão destinado a governar as nações com cetro de ferro, quanto de todos os que observam os mandamentos: os discípulos de ambas as situações estão correlacionados. O grande sinal certamente se refere à comunidade crente, mas como imagem de Maria, que, sendo mãe do Messias davídico, é precisamente a gebîrâ escatológica.
Além da tradição histórica
A exegese científica, confirmando a presença na Palavra de Deus de uma tradição como a da rainha-mãe davídica, oferece elementos úteis para compreender a dignidade e o papel régio de Maria na história da salvação; com duas limitações:
1) tem dificuldade em recuperar tanto Jo 2,1-11 quanto liturgia e magistério não hesitam em atribuir à mesma tradição, quanto At 1,14, que ao longo dos séculos teve uma interpretação nesse sentido;
2) não isola suficientemente os dados, sem dúvida fundamentais, vinculados ao messianismo régio dinástico, daqueles igualmente importantes de origem diversa.
A luz que ilumina plenamente o significado da dignidade e do papel régio de Maria vem também de outras direções; por isso é necessário ouvir novamente os Padres, para os quais, assim como toda a Escritura fala de Cristo, toda a Escritura fala de Maria, cuja realeza descobrem prefigurada em numerosos outros textos, lidos – sem desconsiderar a letra – em uma pluralidade de perspectivas, a partir da tipológica e profética.
A realeza de Maria no pensamento dos Padres da Igreja
A doutrina da realeza de Maria aparece discretamente elaborada nos escritos de Efrem e Ambrósio; mas já no Protoevangelho de Tiago (século II) encontramos um primeiro vislumbre dos aspectos sob os quais esse mistério de graça, claramente enunciado no Novo Testamento, será gradualmente investigado e compreendido à medida que suas antecipações simbólicas no Antigo Testamento forem sendo descobertas.
Rainha e Mãe do Salvador
No plano redentor e salvífico divino, Maria é a primeira beneficiária daquela transformação radical que envolverá toda a humanidade: como nova e virgem terra – na qual será semeada a Igreja (segundo Efrem) – esta criatura é colocada em um novo jardim, o céu-Deus, onde se torna “filha do Rei celeste.” A “Virgo regia”, a “pura”, procede do céu e faz sua entrada solene no momento culminante da história da salvação como “rainha”, como “domina”. Ela é a porta oriental, altíssima e “única” da visão de Ezequiel (Ez 44,1-3) pela qual passa o Príncipe e entra a salvação no mundo: a única morada ou palácio celeste digno de Deus, a única criatura humana preferida aos coros angelicais, da qual Deus assumirá a própria humanidade, a mãe que dará à luz mantendo intacta sua dignidade virginal régia.
Ela é a “verdadeira rainha” predestinada desde a eternidade, prefigurada pela arca guardada na tenda da congregação: totalmente revestida e coroada de ouro puríssimo (Ex 25,11: Vulgata), coberta de esplendor, o que ela contém alude às realidades futuras: nova lei, Pão da vida, reino-sacerdócio. A nova e definitiva “Arca da santidade”, muito mais preciosa e régia que a primeira, é chamada a uma tarefa inaudita: o Salmo 45 (44) proclama o alegre anúncio-euangélion (segundo Crisipo) da suprema dignidade à qual será elevada: a “filha do rei Davi” dará à luz o “filho do Rei celeste”, a profetizada virga da raiz de Jessé transmitirá ao “flor de beleza” cetro, trono e coroa (cf. Ct 3,11).
A santa “Esposa de Deus” – “serva fiel do Senhor” que gerará o “servo obediente de Javé”, a nova Eva que dará à luz o novo Adão – é elevada ao palácio do céu para se tornar mediadora e causa de salvação: por meio dela, a glória de Deus enche a terra, o Sol da justiça é dado ao mundo, o poder das trevas e do diabo são destruídos, a antiga maldição é desfeita, a morte é aniquilada, a vida é restaurada, a paz entre Deus e o homem é restabelecida, e o Reino finalmente instaurado. Ela é o trono verdadeiramente régio, excelso e elevado (cf. Is 6,1) sobre o qual o Senhor dos Exércitos faz sua entrada gloriosa, o novo “Templo do Rei das nações” que substitui o antigo, onde é possível aproximar-se do adorável mistério de Deus: uma jovem traz, sem se quebrar, Aquele que com sua força sustenta todo o mundo.
O prodígio da maternidade divina é acompanhado pela conferência de uma glória, majestade, nobreza e perfeição incomparáveis. Deus a honra mais do que qualquer outra criatura e quer que seja grandemente honrada pelo povo da nova aliança selada pelo seu «fiat». Pérola preciosíssima do Reino, tesouro do amor de Deus, ela é “a mais bela com o mais belo” entre os filhos dos homens. A riqueza de graça com que é agraciada, ela não guarda para si, mas a comunica e distribui. Sublime em virtudes, radiante de méritos, vestida de luz, brilhante como e mais que o sol, e maior que ele porque irradia de sua pessoa a Luz (cf. Jo 1,5.14), ela é a Mulher mais abençoada porque é a mais humilde; fiel à sua missão de ancilla Domini, é a superior que imediatamente visita a inferior (Lc 1,39).
Rainha e Mãe de todos os salvos
A maternidade divina coloca a Sempre Virgem Mãe de Deus no coração mesmo do dinamismo salvífico, o agir trinitário, como centro propulsor de vida, graça, alegria, fonte de esperança, luz, beleza, origem de todos os bens: os novos dons do Reino. Na Cheia de graça, habita e age um poder que lhe permite inverter situações, subjugar forças adversas, derrubar o reino da dor, destruir ídolos, purificar e renovar radicalmente o mundo, preparando-o para acolher o Rei; seu domínio é coextensivo ao do Filho, e se estende ao universo. Em razão da graça e dignidade que lhe são conferidas, o papel de reinar lhe é confiado desde o início: «Essas coisas, Mãe, anuncie a todos… por essas coisas seja Rainha» (Romano, Hino II do Natal 18).
Colaboradora de Deus, “Mãe da vida”, “advogada” da progenitora em defesa de toda a humanidade, a nova Eva – que Deus restaurou no trono perdido pela primeira (segundo Damasceno) – é mãe universal; “mãe de todos os salvos”, “ventre que regenera todos os homens em Deus”. No Calvário, no centro da “câmara nupcial”, aparece como esposa do novo Adão e rainha à direita do Rei, participante das dores do Crucificado, “coroada” por seu sangue; ao contrário da primeira, o parto da infinita multidão de seus novos filhos acontece na dor. No momento em que Cristo cumpre a vontade do Pai com o dom supremo de si mesmo, ela é constituída solenemente e formalmente “início” da Igreja, na qual desempenha um papel central e exemplar de guia e mestra: detém o primado na proclamação do Reino (é Regina Apostolorum) e preside a oração de invocação do dom do Espírito (At 1,14). André de Creta a reconhece presente na maior de todas as orações: ela é a Rainha que prepara o banquete “real” por excelência, o eucarístico. A mediação sacramental confiada à Igreja encontra na aula (regalis) caelestium sacramentorum (segundo Ambrósio) seu sentido originário.
Em vista da perfeição desejada pelo Mestre, a “primeira” e “perfeita” discípula exerce em união com o Filho um serviço de graça e autoridade eficazes para a salvação, sustentando desde os primeiros passos, no novo grandioso êxodo, o povo dos salvos com infinitas intervenções providenciais. O poder/domínio que exerce na Igreja é abertamente reconhecido e proclamado: é necessário que os fiéis entrem na esfera de ação dessa Domina já neste mundo para poderem pertencer ao Dominus no céu (segundo Ildefonso). O amor e a veneração que demonstramos à Mãe do Rei garantem a autenticidade de nosso culto de adoração a Deus.
A assunção, glorificação e entronização no céu – onde, à semelhança do Ressuscitado, retorna como rainha vitoriosa – significam para toda a humanidade a passagem da miséria à riqueza. Na plenitude de suas funções régias e maternas, sustentada pela onipotência do Espírito, a “Senhora de todas as criaturas” trabalha incessantemente para recompor a ruptura causada pelo pecado: sua mediação salvífica (levar Deus ao mundo e conduzir o mundo a Deus) aparece totalmente materna: traduz-se na proteção e preservação da existência, especialmente da vida sobrenatural. Superior até mesmo aos seres incorpóreos (embora serva, como eles, de Deus, os anjos estão ao seu serviço, e também deles ela é Rainha), está associada ainda mais intimamente ao domínio do Rex gloriae até o fim dos tempos, quando se espera uma intensificação de sua intervenção salvífica precisamente como Rainha.
A realeza de Maria no Magistério recente
A encíclica Ad Caeli Reginam do Papa Pio XII permanece como o texto magisterial mais importante sobre a realeza de Maria; seu ensinamento, no entanto, está em perfeita continuidade com a carta apostólica Ineffabilis Deus, com o maravilhoso epílogo da encíclica Mystici Corporis, com a constituição apostólica Munificentissimus Deus e com outros documentos.
A verdade proposta por Pio XII não é nova, pois sempre foi unanimemente professada tanto no Oriente quanto no Ocidente; o papa relembra os fundamentos tradicionais e as razões teológicas: «A bem-aventurada Virgem é Rainha, não apenas porque é Mãe de Deus, mas também porque, como nova Eva, foi associada ao novo Adão»; sua realeza não consiste apenas no grau supremo de excelência e perfeição que ela possui após Cristo, mas também na «participação daquela influência pela qual seu Filho e nosso Redentor justamente se diz que reina sobre a mente e a vontade dos homens»; seu poder na distribuição das graças é quase imenso.
A encíclica não trata de questões específicas nem aprofunda as relações da realeza com os muitos outros aspectos do mistério mariano (imaculada conceição, corredempção, maternidade espiritual, assunção…): esta tarefa é deixada aos teólogos. A finalidade pastoral do solene pronunciamento é particularmente evidente: a festa litúrgica é instituída para que todos os homens possam se reunir em oração ao redor de sua Rainha e se consagrar ao seu Imaculado Coração: «Neste gesto, de fato, reside grande esperança de que possa surgir uma nova era».
No capítulo VIII da Lumen Gentium, o Concílio, consciente da congruência bíblico-teológica de uma temática que não obscurece e nem contradiz a dimensão bíblico-evangélica da Mãe de Jesus, enquadra o título universorum Regina na perspectiva da glorificação da Virgem-Mãe e da mais plena conformidade ao Filho (LG 59), destacando o aspecto essencial de sua maternidade na ordem da graça (LG 62). AG 42, AA 4, PrO 18 retomam o título Regina Apostolorum para sublinhar a “missão” e, portanto, o “serviço” que, seguindo os passos de Cristo e como modelo da Igreja, ela desempenha até a parusia (LG 68). A Marialis Cultus relembra que Maria, «verdadeira sede da Sabedoria e verdadeira Mãe do Rei», na glória do céu «brilha como Rainha e intercede como Mãe» (Rainha da misericórdia, Mãe da graça) e reafirma como perenemente válida a advertência de São Ildefonso: «o Rei é honrado pela homenagem humilde prestada à Rainha» (cf. MC 5.6.11.22.25).
A Redemptoris Mater no n. 41 interpreta a realeza à luz do Magnificat: «Maria tornou-se a primeira entre aqueles que, “servindo a Cristo também nos outros, com humildade e paciência conduzem seus irmãos ao Rei, servir a quem é reinar” (LG 36), e alcançou plenamente aquele “estado de liberdade real”, próprio dos discípulos de Cristo: servir é reinar!». Ainda: «A glória de servir não deixa de ser sua exaltação real: assunta ao céu, ela não cessa aquele serviço salvífico, no qual se expressa a mediação materna, “até a coroação perpétua de todos os eleitos” (LG 62)». Um serviço inaugurado já nas bodas de Caná (RM 21).
Na catequese mariana de 23.7.97, João Paulo II recorda que o povo cristão, com o título de Rainha, deseja colocar Maria acima de todas as criaturas, exaltando seu papel e importância na vida de cada pessoa e do mundo inteiro. Sua realeza expressa o poder que lhe foi concedido para cumprir sua peculiar missão materna, sendo um corolário disso: associada ao poder do Filho, tem um papel na extensão do Reino mediante a difusão da graça divina no mundo; acompanha seus filhos, de quem tudo conhece, com uma proximidade contínua e atenciosa, sustentando-os nas provações, comunicando a felicidade que lhe foi concedida: «É uma Rainha que dá tudo o que possui, participando sobretudo da vida e do amor de Cristo».
A realeza de Maria na Liturgia
A presença de Maria como Rainha na Igreja é, antes de tudo, uma presença na liturgia, onde seu papel é novamente “singular”. A oração diária das horas inclui antífonas de antiga beleza, como Salve Regina, Ave Regina caelorum, Regina caeli. Um discreto aceno à sua realeza está presente em cada celebração eucarística quando ressoa o “gloriosa” do cânone romano, mas nas solenidades marianas, essa nota é dominante.
A memória litúrgica de Maria, Rainha
O objeto específico da memória litúrgica – assim como da solenidade da Assunção, da qual é um alegre prolongamento – é a entronização da Rainha à direita do Rei (Antífona de entrada), uma verdade consoladora que professamos devotamente ao adorar «Cristo Senhor, que deu à sua Mãe a coroa de glória» (Invitatório) e ao agradecer ao Pai por nos ter dado Maria como «nossa Mãe e Rainha» (Coleta, Oração depois da Comunhão).
A primeira leitura (Is 9,1-3.5-6) traz novamente para o hoje litúrgico a vinda do Messias esperado: Ele realiza a transformação radical da realidade em favor de seu povo, abrindo as portas para o reino eterno e universal de Deus. Mas o Filho-criança, Príncipe da Paz, que entra na história humana é o Cordeiro sem mancha que se oferece na cruz pela redenção de todos (Oração sobre as oferendas). Ele é recebido, antes de tudo, pela Virgem-Mãe: com a coragem de Judite, prontamente expõe sua vida para livrar seu povo da humilhação e do abatimento (Salmo responsorial: Jdt 13,18-20); colaboradora generosa do Redentor, ela leva rapidamente a boa nova aos pobres que aguardam: por meio de sua voz, recebem a efusão do Espírito Santo (Evangelho: Lc 1,39-47).
A Igreja, em oração com a Mãe de Jesus, também se abre para acolher o Salvador e participar com Ele no Reino que vem; ela recorda com alegria a total dedicação da Virgem à vida, missão e sacrifício do Filho; seguindo-a no caminho da humildade (Canto ao Evangelho) e da fé (Antífona da Comunhão e Magnificat), a Igreja se associa a Maria, a imita, e com ela oferece, em gratidão, sua própria disponibilidade para servir a Cristo e aos irmãos já neste mundo, aspirando à conformidade mais plena com seu Senhor, a qual a «nobilíssima Rainha do mundo» (Antífona ao Benedictus) já alcançou, e à participação no banquete eterno que espera todos os eleitos (Oração depois da Comunhão).
O dom da gloria filiorum, ápice da existência e coroação da vocação de reinar com Deus, pode ser invocado e esperado com confiança: nossa oração é sustentada pela intercessão eficaz da Rainha celestial (Coleta).
O rito de coroação da imagem da Bem-Aventurada Virgem Maria
A Bem-Aventurada Virgem é com razão considerada e invocada como “Rainha”: porque é Mãe do Filho de Deus e Rei messiânico, augusta colaboradora do Redentor na constituição do Reino, perfeita discípula e supremo membro da Igreja, e com justiça «Senhora dos homens e dos anjos e Rainha de todos os santos» (Praenotanda 5). A coroação da imagem reatualiza o alcance por Maria do objetivo almejado por todos os crentes: a entrada no reino preparado pelo Pai desde a fundação do mundo para aqueles que lhe pertencem. O contexto doutrinal dos textos eucológicos (Lc 14,11; Mt 20,25-28 e similares) orienta a existência do discípulo: a coroa será a recompensa pela fiel sequência do Mestre; o grande título à realeza também para Maria é o de ser “a humilde serva” do Senhor «preocupada com nossa salvação eterna, ministra de piedade e rainha do amor». A ação de graças e invocação, o texto mais significativo, é modulada sobre o Magnificat. A Providência revela seu maravilhoso desígnio de salvação, em relação ao qual a existência de Cristo e de Maria tem caráter exemplar: ambos, conscientemente e livremente, abraçaram esse desígnio, humilhando-se a si mesmos, e Deus os exaltou. O reinar de Maria é efetivo: gloriosamente intercede como Advogada de graça e Rainha de misericórdia, operando eficazmente para que o mistério cumprido nela se realize também no povo messiânico. O Ordo contém as súplicas litaniais a Maria, Rainha, e sete antífonas latinas particularmente sugestivas.
As missas da Bem-Aventurada Virgem Maria
As missas votivas, uma verdadeira e preciosa novidade no curso da autêntica reforma litúrgica desejada pelo Concílio, ajudam a reconhecer o lugar eminente e régio de Maria dentro do povo de Deus e a contemplar seu mistério ao longo de todo o ano litúrgico. Bebendo abundantemente da linguagem da antiga tradição eclesial, muitos formulários introduzem explicitamente na celebração a nota da realeza, que, no conjunto da coleção, pode ser admirada em toda a sua riqueza de nuances, como em um caleidoscópio. Os embolismos prefaciais dos quatro esquemas que, na editio typica, são dedicados especificamente ao tema, sublinham adequadamente a íntima relação de Maria com o Espírito Santo e, a “compaixão” , seu amor misericordioso e ilimitado para com todos os seus filhos.
Conclusão
O significado teológico da realeza de Maria pode ser facilmente compreendido ao se considerar três aspectos fundamentais: a partilha da soberania-regalidade de Deus, o serviço de amor oblativo e a maternidade no povo messiânico.
Rainha no Reino de Deus
Na trajetória exaltante e dramática dos intervenções de Deus na história para restaurar o diálogo com suas criaturas, na revelação progressiva do misterioso plano eterno de salvação que converge para o seu cumprimento em Jesus Cristo, ressoa, por vezes, o anúncio alegre e libertador: “O Senhor reina!” (Ex 15,18 … Ap 12,10). Em um momento absolutamente único e decisivo do desdobramento desse plano, surge no céu, como uma verdadeira “estrela da manhã”, a figura real de uma “Nova Mulher”, desenhada pelo Pai, escolhida pelo Verbo, entregue ao Espírito de Santidade, feita – “cheia de graça” – capaz de operar em sinergia com Deus para a reparação e restauração universal, visando o aperfeiçoamento da aliança: a comunhão de vida com Deus, o propósito último da própria criação.
O “Sol da Justiça” toma dela a veste da sua humanidade e, como Rei-Salvador, resgata, regenera e reintegra na dignidade original os filhos dispersos, prisioneiros e distantes (cf. Lc 15). Nela, aeterne vitae ianua, Deus se faz novamente próximo do homem e o homem de todos os tempos pode novamente aproximar-se de Deus. Sob a sombra do Altíssimo, com o poder do Espírito, do qual se torna morada eterna, a Virgo-regia abre o caminho para a derrota do inimigo da humanidade e para a vitória definitiva do Filho (cf. Gn 3,15), cuja vida, missão e poder ela compartilha intimamente e indissoluvelmente desde o seu peregrinar terreno. Nesse trabalho de alcance cósmico, que durará até a parúsia, a nova Eva, a Imaculada Mãe do Redentor e de todos os salvos, é colocada como um verdadeiro auxílio ao lado do novo Adão (cf. Gn 2,18) “cheio de graça e de verdade” (Jo 1,14).
O evangelho do Reino (reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz) que Deus instaura por meio da obra de seu Cristo é, portanto, acompanhado pelo anúncio alegre da presença régia de uma “filha de Davi”, verdadeira “Arca da Aliança” que traz Deus e verdadeira “Tenda do Encontro” que prepara incessantemente o encontro com o Salvador, iniciando, desde a visita a Isabel, “a pregação do novo reino” (Efrem, Diatessaron I, 28), fermento de vida imortal já presente e ativo. Com o cumprimento do mistério pascal (cf. Jo 19,30), o mistério da “sublime filha de Sião” e “nova Jerusalém” torna-se o mistério da Igreja “esposa do Cordeiro” e “mãe” de uma multidão imensa de filhos (Ap 7,9); de Maria, ela é perenemente o início, o modelo, a fonte, o coração (cf. At 1,14). Ao lado do Rei dos séculos, vestida com o esplendor ofuscante da luz divina (Ap 12), ela exerce sobre o universo uma soberania concedida por seu próprio Filho, e opera incessantemente e eficazmente para a difusão do Reino, obtendo com sua poderosa intercessão as graças necessárias para a santificação de cada um de seus filhos.
Imagem do Servo de YHWH
Nas estrofes 10-27 do IV dos Carmina Soghita, atribuídos a São Efrem, a Mãe de Jesus parece quase se esquivar da homenagem dos “príncipes da Pérsia”, ocultando a verdadeira identidade da criança e também a sua própria: “quando uma humilde serva já deu à luz um rei? … então não chamem meu filho de rei… vejam que a criança está em silêncio e que a casa da mãe é vazia e pobre; não há nada de real aqui… vocês talvez tenham se enganado e o rei nascido deve ser outro…” Comprovada a honestidade dos visitantes, ela primeiro os adverte: “Magos, guardem silêncio! … eu mantive o segredo e não o revelei a ninguém”, e depois lhes concede a paz e os envia como apóstolos da verdade; eles, de fato, confessam abertamente à “Grande Senhora” sua fé e reconhecem que o poder da criança, seu filho, a quem todas as nações se submeterão, já começa a reinar no mundo e a santificar a terra. Humildade, pobreza, esvaziamento de si são características do serviço oferecido por Maria de Nazaré a Deus e ao seu Reino. Este aspecto de mistério oculto, que distingue a dignidade real de Maria, cuja verdadeira grandeza (como já aconteceu com Jesus perante três de seus discípulos: cf. Mc 9,2ss) se manifesta em todo o seu esplendor ao vidente de Patmos – estende-se à Igreja-corpo de Maria: a dignidade que ela já possui nasce da íntima comunhão de vida com o seu Senhor e é uma realidade “outra” daquela exterior e mundana. A Mãe do Messias “humilde” anuncia e antecipa em si o estilo dele (cf. Jo 13,14); é uma rainha, lembra Máximo, o Confessor, que fazia penitência: orava e jejuava. No momento incomparavelmente alegre de sua primeira elevação à glória (a maternidade divina), não se perde nela a perfeita consciência da sua dimensão criatural: “Maria oferece um serviço fiel” (Pier Crisólogo); a consciência de sua dignidade real transparece, no entanto, discretamente no Magnificat, onde Deus é exaltado por “derrubar os poderosos de seus tronos e elevar (entronizar) os humildes”; mas Ele olhou, justamente, para a humildade de sua Serva.
Rainha do povo messiânico
Maria “Rainha” é a mensagem-verdade para cada pessoa que vem a este mundo, uma antecipação da glória futura da Igreja que ilumina a vocação escatológica-real de todo o povo de Deus. A inserção vital em Cristo, nossa via, verdade e vida, é preparada, favorecida, continuamente acompanhada e sustentada pela Theotokos, que em sinergia com o Espírito, o divino Iconógrafo, forma progressivamente e até à perfeição nos filhos a imagem do Filho, a veste real necessária para a entrada no Reino. Em continuidade e comunhão com a “filha eleita do Pai” e verdadeira “Nova Mãe” de todos os viventes – na qual floresce de maneira única a graça da conformidade a Cristo e toda a graça da Igreja se encontra como intensificada e condensada – a Igreja, Esposa do Senhor, regenera nos sacramentos da fé os chamados à salvação.
O “sim” ao amor de Deus – a conversão – constitui o início de um caminho no qual toda a humanidade finalmente redescobrirá sua dignidade real original, objeto da impaciente espera da própria criação (cf. Rm 8,19ss); neste caminho – possível apenas sob o signo da fé incondicional e da aceitação dos planos de salvação/realização que Deus tem para cada um – a mais santa das criaturas é uma guia infalível: Ecce Mater tua! A aceitação do dom que Cristo moribundo faz ao discípulo-Igreja para cumprir plenamente a vontade do Pai, e a comunhão de vida com ela (a entrega-consagração ao seu Imaculado Coração para poder compartilhar seu serviço ao Reino) é, para a Igreja, ao mesmo tempo uma graça a ser invocada e uma resposta de amor à vontade do Kýrios: “Chame aqueles que estão na sala (das bodas: o Calvário!): eles são seus servos. Cada um virá correndo, tremendo, e o ouvirá, ó Santa, quando disser: ‘Onde está meu Filho e meu Deus?'” (Romano o Melode, Maria aos pés da cruz 5). O serviço à Rainha é um título de glória para todo cristão: “Servir ao Senhor e à Senhora é reinar”.
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