A esperança cristã pós-apostólica (II séc.)

No decorrer do século II, a compreensão da esperança (έλπίς) mantém uma profunda conexão com a tradição apostólica, ao mesmo tempo em que revela nuances e ênfases inéditas. A partir dos escritos dos Padres Apostólicos e demais autores desse período, fica claro que a esperança não era apenas um conceito teológico abstrato, mas uma realidade concreta, vivenciada na vida comunitária e pessoal dos cristãos.

Continuidade da Tradição Apostólica

Uma primeira constatação é a continuidade no emprego dos termos έλπίς (esperança) e έλπίζειν (esperar), semelhantes ao uso verificado nos textos do Novo Testamento. Excertos como:

Pastor de Hermas, Visões 3,11,3 «Depois de ela ter falado comigo, vieram dois homens e me levaram a uma torre em construção, colocada sobre as águas, e disseram-me: ‘Entra e faze parte com estes na construção do edifício’. Havia, contudo, muitos construtores ali, todos vestidos de branco, que se apressavam no trabalho. E eu, como estava de coração cheio de fé e de esperança no Senhor (ἔχων πίστιν καὶ ἐλπίδα), desejava ardentemente colaborar também na edificação.»;

Justino Mártir, Apologia 1, 11, 2 «Proclamamos que a religião cristã não é obra de imaginações vãs (κεναὶ ἔλπιδες), mas testemunhamos ser ela a própria verdade, recebida de Deus. É por isso que não tememos ameaças, pois a esperança que temos não se apoia em concepções humanas vãs, mas na promessa divina que vivifica»;

Justino Mártir, Diálogo com Trifão 1,5 «E Trifão respondeu: ‘Meu amigo, há muito te observo, admirando tua coragem e também a esperança (ἐλπίς) que tens em teu Deus. Contudo, pergunto-te: de onde procede tão grande confiança, para que abandones o que para nós é herança sagrada e abraces a doutrina de um homem que foi crucificado?»;

Atenágoras, Súplica 25,2 «Se clamamos a um só Deus e depositamos nEle toda nossa esperança (πᾶσαν τὴν ἐλπίδα), não é por desprezarmos a razão, mas por reconhecermos a unidade e a soberania do Criador. A Ele rendemos culto, confiantes de que tudo quanto prometeu cumprirá».

confirmam que esses escritores dos primeiros séculos seguiam o mesmo vocabulário dos apóstolos.

A conhecida relação entre esperança e perseverança (υπομονή) permanece forte. Em passagens como:

2 Clemente 11,5 «Portanto, irmãos, se cumprirmos a vontade de Deus nosso Pai, seremos da primeira Igreja, a espiritual, que foi criada antes do sol e da lua; mas, se não andarmos segundo a vontade do Senhor, seremos do número daqueles de quem está escrito: ‘Minha casa foi feita caverna de salteadores’. Assim, pois, busquemos perseverar, tendo a esperança (ἔλπις) que nos sustenta em toda boa obra»;

Policarpo, Carta aos Filipenses 8,1 «Exorto-vos, pois, a obedecer à palavra da justiça, a exercitar toda paciência, como vistes em vossos santos irmãos; recordai o que fez o bem-aventurado Inácio, e Zózimo, e Rufo, e também os que estavam com eles, e ainda Paulo mesmo, e os demais apóstolos. Persuadi-vos de que todos estes não correram em vão, mas na fé e na justiça, e que estão agora no lugar que lhes é devido junto ao Senhor, com o qual também padeceram. Todos eles não amaram este século, mas Aquele que morreu por nós e que por nós foi ressuscitado por Deus. N’Ele, pois, depositaram sua esperança (ἔλπισαν)»;

Didachê 16,5 «Então aparecerão os sinais da verdade: primeiro, o sinal do aparecimento no céu, depois o sinal do som da trombeta, e por fim a ressurreição dos mortos. Mas não de todos, pois foi dito: ‘O Senhor virá e todos os santos com Ele’. Então o mundo verá o Senhor vindo sobre as nuvens do céu. E aquele que perseverar na fé e na esperança (ἐν πίστει καὶ ἐλπίδι), será salvo»;

1 Clemente 35,4 «Portanto, quem tem a caridade em Cristo, cumpra os mandamentos de Cristo. Quem pode explicar o vínculo da caridade de Deus? Quem é capaz de exprimir a magnificência de sua beleza? A altura para a qual o amor nos eleva é inenarrável. Amor nos une a Deus, ‘o amor cobre a multidão dos pecados’ (Pv 10,12) e tudo sofre, tudo suporta. Nele está fundada nossa esperança (ἡ ἔλπις).»,

Percebe-se que a esperança se torna o fundamento para enfrentar adversidades. Paralelamente, a associação entre esperança e fé (πίστις) também se faz presente, algo já enraizado nos escritos do Novo Testamento, como se nota em:

1 Clemente 12,7; 58,2 «Pois nossa glória e esperança (ἔλπις) estão firmadas em Cristo, que em seu tempo determinado se manifestará. Não nos apartemos, pois, de tão grande esperança, mas aprendamos dos exemplos passados, para que permaneçamos constantes na fé. […] Amados, sejamos humildes de espírito, deixemos as vanglórias, abandonemos as vãs sedições e convertamo-nos ao que é bom. Pois é melhor para nós que, em simplicidade de coração e em esperança (ἐλπίδι), voltemo-nos à misericórdia de Deus, do que nos gloriarmos em nossos próprios raciocínios»;

Inácio, Magnésia 9,1 «Nada há de melhor que a paz, pela qual se anula toda guerra, tanto das coisas celestes como das terrestres. A fé é o princípio, a caridade é o fim, e as duas, unidas, são de Deus, enquanto todas as outras coisas que conduzem à virtude nascem delas. Quem professa a fé não peca, e quem possui a caridade não pode odiar. ‘Pelos frutos os conhecereis’ (cf. Mt 7,16). Nisto, pois, repousa também a esperança (ἐν ταύτῃ καὶ ἡ ἐλπίς)»;

Epístola de Barnabé 4,8; 6,3; 11,11 «Ele mesmo suportou sofrer tudo isso por nós, para que, sendo feito exemplo, crêssemos nEle. Portanto, nossa fé e esperança (πίστις καὶ ἐλπίς) devem permanecer inabaláveis, pois aquele que prometeu é fiel. […]Contemplai, irmãos, que maravilha: o Senhor suportou entregar seu corpo à destruição, para que por Sua cruz nos salvasse. Não andemos, pois, como se estivéssemos ainda sujeitos à corrupção, mas renovados de coração, na esperança (ἐν ἐλπίδι) da vida que Ele prometeu. […]Disse eu a Trifão: ‘Se crês nos profetas, conforme declaras, deves também reconhecer em Cristo a realização dessas profecias, para que alcances a verdadeira esperança (ἀληθῆ ἐλπίδα). Pois de nada adianta proclamar a Lei se não se vê nela o cumprimento em Cristo, que é nossa justiça.»;

Justino Mártir, Diálogo 35,2; 47,2; 92,4 «Trifão perguntou: ‘Como podes tu, sendo gentio de nascimento, dizer que tens parte nesta herança?’ Respondi: ‘Pela fé que deposito em Cristo, alcancei a esperança de Israel (ἔλπιδα Ἰσραήλ), que não está no mero cumprimento de preceitos, mas no Messias prometido pelos profetas. […] Eis por que nós, cristãos, não titubeamos em confessar Cristo mesmo diante de governantes que nos perseguem. Pois a esperança (ἡ ἐλπίς) que temos não deriva de homens, mas de Deus, que por meio dos profetas nos revelou a glória futura dos que nEle perseveram.».

A tríade: fé, esperança e amor

A tríade paulina – fé, esperança e amor – aparece frequentemente nesse período. Há menções explícitas em:

Policarpo, Carta aos Filipenses 6,2 «Ficai convictos de que todos esses (Ignácio, Zósimo, Rufo e outros do vosso meio, bem como o próprio Paulo e os demais apóstolos) não correram em vão, mas em fé e em justiça, e agora estão em seu devido lugar junto ao Senhor, com quem também padeceram. Pois eles não amaram este mundo presente, mas sim Aquele que morreu por nós e foi ressuscitado por Deus em favor de todos nós».

Mas também chama a atenção a variação na ordem dessas virtudes. Em alguns lugares, o amor precede a esperança:

Epístola de Barnabé 1,4 «Portanto, vendo agora a ocasião favorável para vos escrever algo que sirva de instrução, e para também me alegrar convosco, não o faço como mestre ou alguém de destaque, mas por amar-vos em Jesus Cristo. Assim, procuro exortar-vos a progredir na fé e no conhecimento do Senhor. Pois este tempo é mau, e o adversário exerce grande poder; por isso, precisamos cuidar de nós mesmos e buscar tudo o que sirva à nossa salvação, para que não sejamos encontrados vazios no dia do Juízo. Pelo contrário, coloquemos nossa esperança em Deus, que é poderoso para salvar a todos os que nEle confiam, e não nos desviemos de Seus mandamentos. Pois foi Ele quem nos chamou, não por termos sido justos, mas por Sua própria misericórdia, a fim de que, purificados de nossos pecados, sejamos justificados pela fé e vivamos na caridade que procede dEle».

Enquanto, em outras ocasiões, vem em seguida: Inácio, Magnésia 7,1 «Fazei, pois, todas as coisas em nome de Jesus Cristo. Não realizeis nada separadamente do bispo e do presbitério; nem considereis bom o que fazeis à parte vós mesmos. Ao contrário, haja uma só oração entre vós, uma só súplica, uma só disposição de ânimo, uma só esperança em amor e em alegria irrepreensível, pois um só é o Senhor Jesus Cristo.»).

Algumas passagens até descrevem a esperança como “o início e o fim da fé” (Epístola de Barnabé 1,6 «pois a fé é o princípio e a esperança é o fim, e a caridade é a plenitude entre as duas. Se alguém começa a ter fé, deve logo colocar sua esperança naquele que é o autor e consumador da fé. Assim, pela esperança, chegamos a amar Aquele que nos salvou, pois Ele é fiel para concluir a obra que iniciou»), dando a entender que a vida cristã nasce e se consuma na firme expectativa das promessas divinas. Ao mesmo tempo, o uso do plural έλπίδες (esperanças) em sentido negativo (Justino Mártir, Apologia 1,11, 2 «Não proclamamos uma fé forjada por imaginações ou vãs esperanças (κεναὶ ἔλπιδες). Pelo contrário, testificamos que se trata da própria verdade recebida de Deus, e é por isso que nada tememos das ameaças humanas. Pois a esperança que possuímos em Cristo não se apoia em concepções vãs, mas na promessa divina, capaz de vivificar quem nEla crê») reforça que, para esses primeiros escritores, só havia uma esperança verdadeira, ligada à promessa do Reino de Deus.

Elementos de novidade

Mesmo com a nítida continuidade em relação à teologia apostólica, o século II mostra indícios de uma nova orientação na forma de viver e anunciar a esperança. Embora o foco ainda seja a escatologia e a consumação das promessas divinas, percebe-se um aprofundamento do sentido prático dessa virtude.

Esperança como prática concreta

Nas comunidades cristãs do século II, a esperança torna-se também uma prática de vida que fortifica a perseverança diante de perseguições e sofrimentos. Essa ênfase surge em diversos escritos que apontam para a necessidade de manter a confiança (πιστεύειν) nas promessas divinas mesmo nas circunstâncias mais adversas. Assim, a esperança não se limitava a um discurso religioso, mas sustentava a identidade comunitária e o testemunho público dos seguidores de Cristo.

Com isso, fica evidente que a esperança, além de ser uma virtude teológica fundamental, atuava como força motriz na resistência diante das provações, favorecendo a coesão e a solidariedade entre os fiéis. Enquanto no Novo Testamento se anunciava a vinda de Cristo como algo iminente, no século II esse anúncio se traduz em uma vida marcada pela constância e fidelidade, confiando que, no tempo de Deus, todas as promessas se cumpririam.

Conclusão

O estudo do conceito de esperança no século II revela tanto a continuidade com os escritos apostólicos quanto a evolução prática de uma teologia vivida em comunidades sob pressão. Ainda que a linguagem e o conteúdo teológico não se distanciem drasticamente do Novo Testamento, vê-se um amadurecimento no modo de integrar a esperança à vida quotidiana. Esse período foi crucial para sedimentar o entendimento de que a esperança cristã não é mero ideal, mas força real que sustenta a fé e impulsiona o amor fraterno.

Nas palavras desses primeiros autores cristãos, a esperança é a âncora que mantém firme o barco da fé, mesmo em meio às mais fortes tempestades. Nos séculos seguintes, esse alicerce teológico e prático continuaria a inspirar gerações de cristãos, testemunhando que a esperança vai muito além de um sentimento ou de uma visão de futuro – ela é o próprio respirar da vida cristã, fundamentada na confiança em Deus e no agir perseverante dos fiéis. A esperança, mais do que um simples elemento teológico, torna-se uma prática concreta de perseverança em meio às tribulações e de confiança no cumprimento das promessas divinas.

Related Articles

Responses

Open chat
Necessita de ajuda?
Ave Maria,
como a poderei ajudar?