A esperança e a ressurreição (II séc.)

A história da salvação, aberta ao futuro e marcada pela promessa de vida eterna, inclui necessariamente a ressurreição dos mortos. Desde os tempos apostólicos (cf. 1Cor 15; Mc 12,18-27 par.; Atos dos Apóstolos), a crença na ressurreição é um ponto central na fé cristã. Esta crença expressa uma esperança firme de que o ser humano — em sua totalidade, corpo e alma — é chamado a participar da glória divina.
Segundo a Primeira Apologia de Justino Mártir, essa confiança indica que os cristãos “creem mais profundamente em Deus do que outras pessoas” (cf. Justino, Apologia 1,18). Ao longo do século II, essa esperança precisou ser defendida em dois embates principais:
- Contra objeções helenistas e filosofias que rejeitavam a ressurreição corpórea.
- Contra o chamado gnosticismo, cujos adeptos sustentavam um dualismo severo, reduzindo ou negando o valor do corpo na redenção.
Neste artigo, veremos como essa esperança na ressurreição foi articulada por autores como Clemente de Roma, Inácio de Antioquia, Justino, Taciano, Atenágoras, Teófilo de Antioquia e Irineu de Lyon, cada um em seu contexto histórico e teológico.
A ressurreição como esperança central no início da Igreja
Na Primeira Carta de Clemente, a crença na ressurreição é tão fundamental que molda o dia a dia da comunidade. Clemente enxerga a vida cristã como uma esperança vivida:
1Clem 27,1.3
“Contemplai, amados, como o Senhor continuamente nos mostra a ressurreição futura […] Se guardarmos os Seus mandamentos, Ele, que nos ressuscitou a partir do nada, dará a todos nós parte na vida eterna.”
Essas passagens (24,1–27,7) mostram como a fidelidade de Deus, demonstrada em Jesus Cristo, sustenta a esperança que os cristãos têm na própria ressurreição. A mesma confiança reaparece em 2ª Clemente 9,1 e na carta de Policarpo (Epístola 5,2).
Inácio de Antioquia, que se autodenomina “prisioneiro em Cristo”, coloca a ressurreição no centro do anúncio cristão:
Inácio, Carta aos Tralianos (inscrição)
“Ignácio, chamado Teóforo, à Igreja dos Tralianos em Deus Pai e em Jesus Cristo, nosso Senhor, que é nossa esperança na ressurreição.”
Ele também celebra a “novidade” desta esperança no Dia do Senhor:
Inácio, Carta aos Magnésios 9,1
“Pois se também aqueles que viviam segundo as antigas práticas se aproximaram da novidade da esperança, não guardem mais o sábado, mas vivam segundo o dia do Senhor, no qual nossa vida se levantou por meio dEle e da Sua morte.”
A ressurreição de Cristo é, para Inácio, garantia e fundamento da esperança dos fiéis.
A partir de Justino, a defesa da ressurreição torna-se ainda mais explícita. Embora sua obra específica sobre o tema (provavelmente intitulada Sobre a Ressurreição) esteja perdida, outros textos evidenciam seu argumento:
Justino, Apologia 1,19-20
“Se Deus é onipotente, Ele pode restituir às criaturas a vida que lhes concedeu. Não há absurdo em dizer que Aquele que nos formou à Sua imagem também nos ressuscitará.”
Ele conecta ainda o julgamento final como incentivo à perseverança:
Justino, Apologia 1,18
“A certeza de que seremos julgados segundo nossas obras nos estimula a praticar a virtude, confiando na ressurreição daqueles que fazem o bem.”
Curiosamente, Justino (assim como Taciano, Atenágoras e Teófilo de Antioquia) não faz menção explícita à ressurreição de Jesus como prova. Preferem basear-se na onipotência de Deus e na dignidade do ser humano para sustentar a plausibilidade de nossa ressurreição.
A salvação de todo o ser humano
Irineu, bispo de Lyon, enfrentou não apenas a cultura pagã, mas também os gnósticos cristãos, que desacreditavam na ressurreição corpórea. Ele dedicou boa parte de seu quinto livro de Adversus Haereses a demonstrar que a esperança na ressurreição é inseparável da fé na encarnação do Verbo:
Irineu, Adversus Haereses 5,2,2
“Se o Verbo se fez carne para nos salvar, a carne, santificada pela união com o Verbo, há de ressuscitar. De outro modo, em vão teria Ele habitado entre nós.”
Irineu discute ainda a aparente contradição em 1Cor 15,50 (“carne e sangue não herdarão o Reino de Deus”), afirmando que Paulo se refere à natureza caída, não à carne redimida em Cristo.
Irineu vincula diretamente a Eucaristia à nossa ressurreição:
Irineu, Adversus Haereses 4,18,5
“Pois, recebendo o cálice misturado e o pão que se tornou Eucaristia, crescemos na unidade e temos em nós o penhor da ressurreição, a ‘spes resurrectionis’ que Ele nos confiou.”
Para ele, salus carnis (salvação da carne) e “visão de Deus imortal” (Haer. 5,8,1; 4,20,5) são as grandes promessas que definem a esperança cristã. O dualismo gnóstico, que desprezava o corpo, é veementemente rejeitado: Deus quer salvar o homem integral — corpo, alma e espírito.
Irineu lê Apocalipse 20,2-7 de forma literal, acreditando num reino intermediário de mil anos em que os justos receberão parte da recompensa por sua paciência (Haer. 5,32,1-36,3). Ele une a esperança judaica de um reino messiânico terreno com a esperança cristã na ressurreição final.
Essa interpretação “milenarista” foi gradualmente superada no Ocidente, sobretudo com Santo Agostinho, que reinterpretou o milênio de forma mais simbólica. Ainda assim, em Irineu, esse esquema demonstra como a confiança na ressurreição se articula a uma concepção linear e ascendente da história da salvação, culminando na visão plena de Deus.
Conclusão
A esperança cristã na ressurreição dos mortos atravessa todo o período pós-apostólico, mostrando-se essencial para a identidade e a vida das primeiras comunidades. De Clemente de Roma a Irineu de Lyon, os Padres defendem que:
- A ressurreição não é metáfora, mas uma promessa real, ancorada tanto na onipotência divina quanto no valor intrínseco do ser humano criado à imagem de Deus.
- A fé pascal não se restringe apenas a crer que Cristo ressurgiu, mas inclui a certeza de que nós também ressuscitaremos, permanecendo fiéis ao amor e à justiça de Deus.
- A Eucaristia e a vida comunitária se tornam lugares concretos onde se antecipa a ressurreição, pois ali se experimenta a comunhão com o Verbo Encarnado.
Como afirma Irineu, o Deus que “assumiu nossa carne” deseja salvar todo o homem — e é exatamente nessa confiança que se manifesta a nossa “spes resurrectionis”. Num tempo em que várias correntes religiosas e filosóficas negavam o valor do corpo, o cristianismo proclamava, sem meias palavras, que o futuro do homem passa pela vitória sobre a morte e pela participação plena na vida divina.
A esperança da ressurreição revela que cremos mais profundamente em Deus do que outros, pois se Ele é onipotente, tudo pode restaurar, inclusive a carne. Não há obstáculo que limite o Criador. (cf. Justino, Apologia 1,18-20).
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