A esperança na história da salvação em Justino e Irineu (II séc.)

O século II foi marcado por intensos debates teológicos, especialmente no confronto com o judaísmo e o helenismo. Por volta de 150 d.C., figuras como Justino Mártir desempenharam um papel crucial na defesa e na reformulação da esperança cristã (έλπίς). Para além dele, Irineu de Lyon se destacou ao delinear uma verdadeira “história da salvação”, na qual o ser humano é progressivamente levado ao encontro com Deus.

Este artigo apresenta como esses autores — Justino e Irineu — desenvolveram a perspectiva histórica e escatológica da esperança cristã, ao mesmo tempo em que dialogavam com as escrituras do Antigo Testamento e com a tradição apostólica.

O confronto com o Judaísmo e o Helenismo em Justino

Por volta de 150 d.C., Justino Mártir enfrentou objeções de judeus que rejeitavam a ideia de um Messias crucificado:

Justino Mártir, Diálogo com Trifão 10,3
“Disse Trifão: ‘Nós, que seguimos a Lei, não podemos conceber que o Cristo de Deus tenha padecido tal ignomínia. É absurdo crer que o Ungido fosse crucificado’.”

Da mesma forma, havia a necessidade de demonstrar a universalidade da salvação para judeus e gentios:

Justino Mártir, Primeira Apologia 1,4-6
“Apresentamos esta súplica em favor de todos os homens injustamente perseguidos, para que seja reconhecida a verdade, não para privilegiar este ou aquele povo, mas para que entendais como a doutrina de Cristo é universal.”

Antes de Justino, a Epístola de Barnabé já havia estabelecido um contraste entre a falsa esperança dos judeus e a verdadeira esperança dos cristãos:

Epístola de Barnabé 16,1
“Eles se enganam, pensando que ainda esperam na construção de outro templo, quando, na verdade, tudo já se cumpriu naquele que é o verdadeiro Templo.”

Epístola de Barnabé 11,6-11
“Aqueles que põem sua esperança no Senhor não serão confundidos, pois a promessa dEle não falha. Se os antigos não O reconheceram, isso se deve à dureza de seus corações. Mas nós, que recebemos a Palavra, temos a verdadeira esperança, fundada na cruz de Cristo.”

Nesse sentido, Barnabé afirma que a fé cristã “começa e se consuma na esperança” (Ep. Barn. 1,6; cf. 1,4; 4,8; 6,3).

Justino busca reconciliar Antigo e Novo Testamento, mas critica a incompreensão judaica sobre as profecias e a ideia de duas vindas de Cristo:

Justino Mártir, Diálogo com Trifão 14,18; 32,2; 40,4; 49,2; 52,1; 110,2.5
“Ao interpretar as promessas divinas, percebe-se que o Messias devia vir primeiro em humildade — como servo sofredor — e depois em glória. Vós, judeus, lestes as Escrituras, mas não entendestes que há dois adventos profetizados: um no qual Ele padece, outro em que Ele se manifesta com poder.”

Na Primeira Apologia, Justino apenas menciona de modo breve essa tensão entre o “já” e o “ainda não”:

Justino Mártir, Primeira Apologia 1,52,3
“Proclamamos que aquele que veio em forma de servo virá novamente como juiz de toda a criação, pois a Escritura não se contradiz.”

Porém, no Diálogo com Trifão, ele aprofunda o tema, explicando que, enquanto os judeus ainda aguardam o Messias, os cristãos creem que a primeira vinda já ocorreu:

Justino Mártir, Diálogo com Trifão 110,1
“Perguntas-me por que proclamamos que o Cristo já veio. Digo-te: é porque as profecias sobre o Servo Sofredor se cumpriram em Jesus, e agora esperamos, com igual esperança, Seu retorno em glória.”

Justino descreve a esperança cristã como uma esperança confiante:

Justino Mártir, Diálogo com Trifão 52,4
“Quando o Logos declarou, por meio de Jacó: ‘Ele será a esperança das nações’ (Gn 49,10), anunciou misteriosamente as duas Parusias de Cristo, admitindo que vós, gentios, acreditaríeis nEle, como agora podeis ver; pois nós, vindos de todos os povos, nos tornamos piedosos e justos pela fé, e esperamos Sua segunda vinda.”

Ele apoia-se em Gênesis 49,10 e em passagens de Isaías sobre a esperança das nações:

Justino Mártir, Primeira Apologia 1,32,12
“Foi dito pelo profeta Isaías: ‘Naquele dia, a raiz de Jessé se erguerá como estandarte para os povos, e as nações recorrerão a Ele’ (Is 11,10). Não é outra pessoa senão Cristo, em quem depositamos toda a nossa esperança, pois Ele é aquele que une judeus e gentios em um só povo.”

Para Justino, somente Deus pode salvar; logo, a esperança verdadeira está em Seu agir:

Justino Mártir, Segunda Apologia 2,5
“Nossa confiança não está em governantes ou homens, mas em Deus, que, tendo criado todas as coisas, enviou Seu Filho para nos resgatar e voltará a manifestar Sua glória.”

Irineu de Lyon: a esperança como progresso contínuo na história da salvação

Em Irineu, encontra-se uma teologia da história estruturada na progressiva familiarização entre Deus e o ser humano:

Irineu de Lyon, Contra as Heresias (Adversus Haereses) 3,20,2; 5,8,1
“Deus se faz próximo, e o homem é progressivamente educado para a visão divina, de modo que, assim como num processo de crescimento, vá tornando-se capaz de contemplar a glória do Pai.”

Embora a palavra “esperança” (em latim spes) apareça poucas vezes de forma direta (Haer. 4,10,2; citando Gn 49,10: spes gentium), toda a teologia de Irineu está permeada pela ideia de que a humanidade progride rumo à comunhão plena com Deus:

Irineu de Lyon, Contra as Heresias 4,9,3; 4,11,1; 4,19,2; 5,36,2; Demonstração da Pregação Apostólica 1
“A história sagrada caminha desde a criação até a plena manifestação do Filho de Deus, em que todas as coisas serão restauradas e o homem, por fim, alcançará sua maturidade em Cristo.”

Para Irineu, esse crescimento ocorre parcialmente na primeira ressurreição (a vitória sobre o pecado) e plenamente na segunda (a ressurreição final). Mesmo na eternidade, porém, o ser humano não esgota a contemplação de Deus:

Irineu de Lyon, Contra as Heresias 4,11,1; 4,19,3; 4,20,7; 4,38,1; 4,39,2
“Criado à imagem, o homem sempre estará aquém de Deus, mas participará continuamente de Sua glória. A plenitude da visão ainda não se deu; porém, pela fé, recebemos já agora as primícias do que seremos na consumação.”

A esperança, nesse sentido, se une ao fato de que a graça divina sustenta todo o progresso humano:

Irineu de Lyon, Contra as Heresias 4,37,4; 2,34,2; 3,20,2; 4,6,4; 5,2,3
“O homem não se eleva por si mesmo, mas é levado pela mão daquele que o chamou à vida. O Espírito Santo, consolador, anima a fé e a esperança, manifestando o amor de Deus em nós.”

Irineu mostra que a esperança não existe isoladamente, mas se articula com a fé e o amor:

Irineu de Lyon, Demonstração da Pregação Apostólica 3; Contra as Heresias 4,16,5
“Fé, temor e amor formam a estrutura da vida cristã. Quem crê, começa a temer o juízo divino e assim vive no amor de Deus, que o sustenta e lhe oferece o perdão.”

O amor, aprendido a partir da fé (Demonstr. 95), deve ser cultivado constantemente:

Irineu de Lyon, Contra as Heresias 2,26,1; Demonstração da Pregação Apostólica 42
“O homem deve perseverar no amor, pois é nele que o progresso se realiza. Como uma planta que cresce, a alma se fortalece na caridade e frutifica na esperança.”

Mesmo após a morte, o crescimento permanece:

Irineu de Lyon, Contra as Heresias 5,31,2
“As almas aguardam a ressurreição no mundo dos mortos; no entanto, não estão inertes, mas prosseguem, como num lugar de preparação, aperfeiçoando-se para contemplar mais plenamente o Senhor.”

O “estado intermediário” entre a primeira e a segunda ressurreição permite a continuidade da relação com Deus:

Irineu de Lyon, Contra as Heresias 5,32,1
“Pois até que chegue a consumação, podem reinar, de certo modo, como recompensa pela paciência (sufferentia), mas ainda se abrem às inspirações do Espírito, crescendo naquilo que já experimentaram em vida.”

A referência a 1Cor 13,13 é clara: fé, esperança e caridade não cessam. Especialmente a esperança, fundada na infinita bondade de Deus, permanece viva mesmo na eternidade:

Irineu de Lyon, Contra as Heresias 2,28,3; 4,12,2
“Pois se Deus é infinito, também o que dEle recebemos não se limitará; a alma crescerá cada vez mais em entendimento, e a esperança não se extinguirá, mas continuará a nos conduzir na comunhão de Seu amor.”

Conclusão

No confronto entre judaísmo e helenismo, teólogos como Justino Mártir e Irineu de Lyon aprofundaram a doutrina da esperança cristã, situando-a numa verdadeira história da salvação. Enquanto Justino dialoga com o Antigo Testamento e insiste na dimensão escatológica (com a dupla Parusia de Cristo), Irineu destaca o progresso do ser humano rumo à comunhão divina.

Desse modo, a esperança deixa de ser uma simples expectativa futura e passa a ser vista como força viva, presente em cada estágio do desenvolvimento espiritual. Ela se ancora na fé e se manifesta no amor, sustentada pela graça divina, seja na primeira ressurreição (libertação do pecado), seja na segunda (consumação final).

“A esperança, que se funda na bondade infinita de Deus, jamais se esgota, pois o amor divino é infinito e o ser humano, em sua condição criada, sempre poderá crescer em conhecimento e comunhão.”
(Irineu de Lyon, Contra as Heresias 4,11,1; 4,12,2)

Assim, a esperança cristã no século II — especialmente na visão de Justino e Irineu — integra o passado salvífico (promessas cumpridas na primeira vinda de Cristo), exige uma resposta presente de conversão e fidelidade e projeta a consumação final, em que a comunhão com Deus continuará a se aprofundar por toda a eternidade.

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