A vocação de Maria: resposta de fé à Palavra

O que é a vocação de Maria?

Por este termo, entendemos o ato com que Deus chama Maria para colocar a sua vida e a sua pessoa totalmente à disposição de seu amor; tal apelo não implica a anulação da liberdade, da vontade e da inteligência de Maria, numa palavra da sua personalidade, mas sim uma profunda reestruturação de toda a sua vida. 

A personalidade de Maria é livre autodeterminação, mas é mantida livremente por ela à disposição do ágape trinitário; o seu mundo humano, o seu corpo e os seus sentimentos não se anulam nem se substituem, mas animam-se desde dentro, para poder proclamar e manifestar a sua adesão à vontade de Deus, uma adesão absoluta e incondicional mesmo onde não está plenamente ciente do que a espera. O seu eis me aqui é certamente precedido e animado pela obra daquele Espírito que a capacita para uma maternidade singular, mas continua a ser uma expressão da sua personalidade livre. O amém de Maria ao sim de Deus em Cristo é único e ao mesmo tempo é modelo para cada discípulo e para a vida da Igreja.

Para aprofundar este alinhamento de Maria com a vontade de Deus, podemos partir do texto da Anunciação de Lc 1,26-38. Não existe nada nesta narração que sugira que estamos diante de uma proposta simples; é na realidade o anúncio de um decreto divino que, como tal, não pode deixar de ser cumprido. Em passagens semelhantes – como o ‘riso de Sara’ ou a incredulidade de Zacarias – a mesma incredulidade do interlocutor não causou o cancelamento das promessas de Deus, mas sua confirmação porque, como também lembra o texto de Lucas, nada é impossível para Deus.

Para além do mais toda a história da salvação é realizada por Deus apesar da infidelidade do povo. Neste caso, porém, o modelo que o evangelista usa para descrever o comportamento de Maria é Abraão, aquele que acreditou em Deus.

Quanto a Abraão, a fé também se expressa para Maria nos termos existenciais daqueles que confiam total e livremente em Deus.

A Dei Verbum 5, do Concílio Vaticano II que afirma:

«a Deus que revela é devida a “obediência da fé” (Rom 16,26; cfr. Rom 1,5; 2 Cor 10, 5-6);

pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus oferecendo “a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade” e prestando voluntário consentimento à Sua revelação. Para prestar esta adesão da fé, são necessários a prévia e concomitante ajuda da graça divina e os interiores auxílios do Espírito Santo, o qual move e converte a Deus o coração, abre os olhos do entendimento, e dá “a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade”. Para que a compreensão da revelação seja sempre mais profunda, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé mediante os seus dons».

Algumas décadas mais tarde quase como um comentário a este texto a Redemptoris Mater de São João Paulo II escreve que Maria

«respondeu com todo o seu ser feminino e nesta resposta de fé continha uma perfeita cooperação com a graça de Deus que previne e ajuda e uma perfeita disponibilidade para a ação do Santo Espírito. A fé, de fato, é um contato com o mistério de Deus: Maria está constantemente, diariamente, em contato com o mistério inefável de Deus que se fez homem». 

Maria no Ecce ancilla, ou seja, no eis a Serva constrói o fiat mihi. Maria não apenas observa o que está acontecendo, mas coloca a sua vontade, o seu consentimento, a sua postura pessoal ao serviço desse evento. O fiat mihi mantém a ação de Deus no centro e assume o papel de companheira por direito próprio: deixa que aconteça o que Deus quer nela.

O fato de que a fé mariana seja aqui a resposta a uma autocomunicação divina que funda toda a história salvífica da humanidade faz com que a fé de Maria assuma o papel de antecipação global da livre resposta humana . É isso que a patrística desenvolverá com o paralelo Eva-Maria: como Eva trouxe a morte, Maria trouxe a vida, ao ponto de Irineu falar de Maria como

«a causa da salvação para si e para todo o gênero humano».

Embora a filosofia ainda não tenha esclarecido claramente a relação entre a liberdade individual insubstituível e a solidariedade pertencente a uma vida comunitária, o fato é que as Escrituras ensinam que

«como todos morrem em Adão, todos serão vivificados em Cristo» (1 Cor 15,22). 

No contexto da adesão plena de Maria ao mistério do Verbo feito carne, o seu papel era realizar o primeiro e decisivo encontro da graça de Cristo com a humanidade. A partir de então, o encontro da graça de Cristo com a humanidade terá sempre a estrutura de uma síntese de graça e fé na linha do abandono da própria vida nas mãos de Deus. 

A graça de Cristo é onde existe «a plenitude da divindade» (Col 2,9); por isso, não existe outra forma de participação nesta graça que não seja o abandono da vida, pela fé, nas mãos do Deus de Jesus. O ponto em que esta consciência é mais evidente é o Magnificat: este cântico, de facto, celebra o júbilo de Maria, tanto pela consciência de que Deus olhou para a humildade de sua Serva e realizou grandes coisas nela, como pela certeza de que a partir de agora todas as gerações a chamarão bem-aventurada.

Se fôssemos completar o relato da maternidade de Maria, não deveríamos passar em silêncio as intervenções de Simeão, um homem justo e temente a Deus que esperava o conforto de Israel e da profetisa Ana: o significado de sua intervenção é reiterar mais uma vez que este Filho não é para a mãe, mas para a obra que o Pai quer realizar em benefício da humanidade. Paralelamente, o destino de Maria é indicado como uma entrega à missão do Filho e aos singulares momentos. Temos assim em Maria a representante da Igreja e da humanidade: uma vez que Maria representava todos os homens, o sacrifício da redenção foi universal e perfeito para toda a humanidade porque esta lhe pertence totalmente.

A relação entre Cristo, Maria e a humanidade pode ser traduzida com a noção de representação, categoria que, ligando o mistério daquele Uno e a salvação de muitos, relaciona o mistério de Cristo à função da Igreja. Em sua missão, Cristo é o representante de Deus para a humanidade e o representante da humanidade para Deus. Enquanto o uso cristológico da noção de representação é relativamente difundido, o uso mariológico desta categoria é quase desconhecido. Maria é a representante de Cristo para a humanidade e é a representante da humanidade para Cristo. A Mãe do Verbo é tipo e modelo dessa nova humanidade que é a Igreja e, neste sentido, a obra de Cristo encontra nela a sua realização.

Deve-se ter em mente que Maria não tem parte na constituição da graça, mas na sua comunicação e que a sua representação da Igreja nos permite pensar a comunicação da graça – a Igreja possui a plenitude dos meios da graça – nos seguintes termos: o mistério da Igreja, refere-se ao diálogo de amor e de fé que Deus tem com Maria e não a uma lógica primordialmente institucional. Se, então, tivermos em mente que a representação desenvolveu o tema da solidariedade social passando da dinâmica substitutiva (ou em vez de) para uma dinâmica participativa (ou a favor de), então é indiscutível que o representante exerce a sua função não libertando os outros da missão, mas fazendo-os participar de sua jornada de forma antecipatória.

A plenitude de um amor que se exprime no abandono de si ao Pai e no dom de si aos irmãos representa o caminho que Jesus percorre e traça para todos os seus discípulos. A sua graça que vai além dos confins visíveis da Igreja para difundir nos corações de todos os semina Verbi e os valores do reino o que torna possível que a Igreja reconheça que

«Deus não prefere as pessoas, mas acolhe aqueles que o temem e praticam a justiça independente da nação a que pertençam».

Se existe aqui um modo de agir de graça que a Gaudium et Spes 22 reconhece como um modo que o Espírito usa para «entrar em contato, da maneira que Deus conhece, com o mistério pascal» e se existe nisso «uma misteriosa relação com a Igreja», não deveríamos pensar que existe aqui também uma misteriosa capacidade mariana de antecipar o mistério de Cristo e de comunicar a sua graça? Este é um tema ainda à espera de ser estudado. O que implica essa relação misteriosa com a Igreja e sua antecipação mariana? A que capacidade de fé e de amor ela se abre? Qual a capacidade que nos oferece para estar diante de Cristo (cf. Mt 25,40.45) como aqueles que, no amor, o reconhecem na sua fraternidade humana?

Em todo o caso, fazer de Maria a representante da nova humanidade não poupa a ninguém o compromisso da fé e da caridade: só a comunhão com a fé e a caridade de Maria – por sua vez a comunhão com Cristo – permite dar à nossa vida o seu significado. Em Maria, as pessoas não são substituídas, mas colocadas à frente de seu dever de ser; com efeito, na sua relação com Cristo, Maria não só abre espaço para o Filho, mas também antecipa a resposta da humanidade à sua graça. Por isso, a sua dedicação a Cristo não tem um valor meramente representativo provisório, mas, como participante do acontecimento Cristo, introduz-nos no acontecimento salvífico e na sua plenitude. Em Maria, portanto, supera-se toda finitude da criatura concebida em contraste com a infinitude de Deus: a sua dedicação ao Filho implica o traçado de um caminho de plena correspondência com Ele. Em seu rosto resplandece como um esplendor a fé e o amor os quais iluminam o seu singular papel materno, estendendo a sua vocação à totalidade da Igreja e da humanidade.

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