Acolher a Palavra no quotidiano como Maria

Introdução

Considero este tema muito abrangente, e, portanto, limitar-me-ei a alguns aspectos do que seria justo e necessário dizer. Começarei com a famosa frase de Bento XVI: “O Magnificat é inteiramente tecido com fios da Sagrada Escritura, fios retirados da Palavra de Deus. Assim, revela-se que ela [Maria de Nazaré] na Palavra de Deus está verdadeiramente em casa, sai dela e nela entra com naturalidade. Ela fala e pensa com a Palavra de Deus; a Palavra de Deus torna-se sua palavra, e sua palavra nasce da Palavra de Deus” (Deus caritas est, 41).

O Papa Bento XVI, bem como todos nós, sabe que o Magnificat é uma expressão de oração e louvor do que Maria sentiu naquele momento e em toda a sua vida e também da simbiose entre ela e a comunidade dos fiéis. Ou seja, esse magnífico cântico é como uma tapeçaria feita por muitas mãos, como a exultação de uma multidão de fiéis, como o eco de múltiplos sons que se fundiram. Maria, em sua vida e em sua aventura de graça, é a mais digna de pronunciá-lo e a mais conforme à teologia experiencial que nele se reflete. A Virgem é a voz de toda a Igreja que se identifica com ela no cântico. Pois uma composição tão refinada, com mil ecos bíblicos, imagens tão sugestivas e eficazes, horizontes tão amplos, mas ao mesmo tempo tão próxima da linguagem, terminologia e ritmo da doxologia de todas as Escrituras, é um fruto pessoal e coletivo, ressoa no coração e na alma feminina de Maria de forma única e retumbante como um trovão no ethos de todo o povo dos filhos de Abraão e dos redimidos pelo novo Adão.

Lucas certamente contribuiu com sua habilidade literária para essas palavras, mas também a distância entre o evento inicial e a composição material do texto tornou possível fundir a emoção inicial com os resultados de uma experiência pessoal e coletiva que se encaixou no texto e em seus ecos. Tornou-se verdadeiramente um canto de nostalgia e esperança, mas também uma resposta de oração e doxologia para tudo o que já havia se realizado e tomado forma plena e definitiva. As raízes da antiga aliança são evidentes, bem como a verdade da nova Aliança em seus núcleos mais destacados do texto.

A originalidade de Lucas

Todos nós conhecemos a parábola do semeador: os três sinóticos a narram com suas próprias nuances (cf. Mt 13,1-9.18-23; Mc 4,1-20; Lc 8,4-15), mas também a colocam de acordo com as necessidades estruturais diferentes, próprias de cada evangelho. Gostaria de me concentrar na redação de Lucas e destacar uma operação que Lucas realiza (Lc 8,4-15). Esta parábola é colocada por Lucas em um contexto completamente especial, não por acaso, antes de narrá-la, o evangelista lembra que ao redor de Jesus havia homens e mulheres que o seguiam, compartilhando com ele viagens, pregação e preocupações (Lc 8,1-3).

A premissa da parábola – ao contrário dos outros dois sinóticos, Marcos e Mateus – é antes de tudo que há um discipulado misto, composto por mulheres e homens, e, portanto, eles são os destinatários mais imediatos da parábola. Podemos até dizer que eles deveriam ser a forma visível da frutificação da semente lançada pelo semeador. Certamente há também “uma grande multidão que se reúne” (Lc 8,4), mas isso é um estereótipo. Aqueles que realmente são os primeiros e diretos destinatários do significado da parábola são eles, discípulas e discípulos.

Depois de apresentar a parábola e explicá-la – e todos sabemos como é – embora sem as percentagens finais, mas falando de “fruto na perseverança (karpoforoúsin en hypomonè)” – uma expressão que denota menos eficiência e mais sensibilidade e qualidade – Lucas conclui chamando novamente a atenção para pessoas específicas, no caso a presença da mãe e dos irmãos que estão tentando contatá-lo, mas não conseguem, “ficaram do lado de fora” (éxo stèkontes) diz Marcos (Mc 3,31; cf. Mt 12,46). Essa situação significa tanto a aglomeração da multidão quanto a dificuldade até mesmo para os parentes entenderem verdadeiramente a novidade que Jesus estava propondo.

João também menciona que nem mesmo os seus o compreendiam e acreditavam nele (cf. Jo 7,3-6). Agora, a resposta de Jesus àqueles que o informam que seus parentes o estão procurando, talvez até para sugerir que ele se acalme devido à agitação, Jesus responde: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra (o logos) de Deus e a praticam” (Lc 8,21). Essa resposta é drástica em relação a quem realmente pode fazer parte da família de Jesus a partir de agora, e, como mencionei, serve como um quadro de encerramento da parábola do semeador e de sua explicação. No entanto, podemos vislumbrar algo mais.

A mãe e todos os seus irmãos, assim como qualquer pessoa que queira ser discípula, seja homem ou mulher, devem aceitar um caminho de escuta e discipulado, de nova prática e novos horizontes, e direcionar suas vidas para outras relações que as regenerem, permitindo uma nova “pertença familiar“, verdadeiramente uma nova identidade. Isso ocorre através de uma escuta intensa, obediente e regeneradora da Palavra do Mestre, semeada com generosidade e acolhida com um coração “bom e generoso” (en cardía kalè kai agathè: Lc 8,15).

Pode-se afirmar com firmeza que essas palavras de Jesus não representam um afastamento de sua família, mas um convite – tendo em mente também o contexto feminino que abre e fecha o trecho da parábola – a se tornar um ventre fecundo da Palavra, exatamente como a mulher experimenta a maternidade, e a vigiar com perseverança, ou seja, com constância atenciosa e amorosa, o desenvolvimento dessa semente misteriosa, em uma simbiose que transforma um ao outro e se torna esperança e ritmo de vida.

Para falar sobre como “acolher a Palavra como Maria e incorporá-la na experiência vivida“, é preciso colocar Maria no horizonte apontado por Cristo: ela mesma, depois de recebê-lo como Verbo eterno em uma gravidez misteriosa realizada pelo Espírito Santo, depois de tê-lo gerado para a vida humana, é chamada a embarcar em um caminho de discipulado, para ser, por sua vez, discípula do filho que agora se tornou um Mestre público maduro. Um discipulado que não é apenas uma presença ao lado, mas também uma regeneração misteriosa do coração, graças à semente incorruptível da Palavra nova, viva e eterna (cf. 1 Pe 1,23), à qual ela mesma deu carne e identidade humana.

Maria de Nazaré: hebreia e Filha de Sião

Não há dúvida de que Maria tinha uma identidade judaica com todas as implicações que essa afirmação carrega: às vezes a chamamos de “filha de Sião“, e isso se aplica à linhagem, aos costumes, aos deveres e às proibições, à religiosidade e ao senso de identidade. E também na assiduidade em ouvir e obedecer à Palavra. É inconcebível um judeu e uma judia sem um “ouvir intenso” da Palavra.

Lucas não desce aos detalhes da vida judaica de Maria: mas há elementos que podemos, com um pouco de introspecção e sem forçar, destacar, e dos quais podemos fazer emergir as características típicas de uma crente judia, cuja fisionomia não seria compreensível se não na estrutura típica da vida judaica, com convicção e não por casualidade. O fato de Lucas começar já com a situação de Maria prometida a José, e não se preocupar em dizer uma palavra a mais sobre sua infância ou algum aspecto de sua experiência religiosa naquele momento, não significa que ela não tinha essas qualidades.

Para uma pessoa judia que conhecia as Escrituras, a frase “não temas“, que acompanha a perplexidade do protagonista, é típica das teofanias, e Maria mostra estar ciente disso. E a perturbação é a reação normal de um judeu diante de um evento de revelação divina. Não é simplesmente timidez, surpresa ou um momento de desconforto: nessa perturbação prolongada, acompanhada pela reflexão, com um sentimento de temor e admiração, sobre o significado e a finalidade da saudação especial, encontramos a reação clássica do israelita. É a sensação de uma presença que supera e chama para uma tarefa que sempre ultrapassa as próprias visões e planos.

Isso é ainda mais verdadeiro neste caso, em que a expressão “o Senhor está contigo” – também esse é um modelo clássico de abordagem – é precedida por uma espécie de definição surpreendente: kecharitomène, que poderíamos traduzir como “cheia de graça“, o que realmente parece inadequado para uma jovem de quinze anos. Poderia também ser uma expressão cortês, como algumas tradições orientais dizem: “como és graciosa, bonita, esplêndida“. Mas no contexto, significa – como todos sabemos – muito mais, em termos de qualidade e substância, como é melhor explicado depois pela repetição: “encontraste graça diante de Deus” (Lc 1,30: chárin parà tò Theò), que implica não apenas satisfação, mas também: trouxeste alegria, alegraste o coração de Deus, aos olhos e ao coração dele, és amada e desejada.

A resposta do anjo poderia ser comentada de muitas maneiras. Sem dúvida, não teria sido compreensível sem uma intensa familiaridade com as Escrituras, das quais contém muitas alusões, que não poderiam escapar a uma judia que conhecia as Escrituras. Não pretendo entrar neste aspecto importante. Prefiro propor uma interpretação complementar da resposta de Maria ao anjo: “Como será isso, pois não conheço homem?” (Lc 1,34). Sabemos muito bem que, embora comprometidos com um casamento prometido, Maria e José ainda não coabitavam, de acordo com o costume judaico que previa o vínculo do matrimônio e, posteriormente, a coabitação, com o cortejo nupcial. Sabemos muito bem que a leitura tradicional vê nesta expressão de Maria (epéi ándra ou ginòsko) – a intenção de virgindade, também apoiada pelas narrativas apócrifas sobre a jovem Myriam e sua dedicação (também segundo os apócrifos) ao serviço do Templo. Uma interpretação tradicional e muito bonita, como todos sabemos, mas talvez um pouco exagerada, porque se já estavam no processo de matrimônio, é claro que a intenção de ambos era ter um relacionamento conjugal normal, incluindo a procriação.

Não faria sentido pensar em uma “esposa” que excluísse o desejo de uma intimidade genuína e também a disponibilidade pessoal para vivê-la com fertilidade. No entanto, gostaria de propor outra interpretação.

A esposa- Israel está sem homem, está estéril

Essa frase, a primeira e a segunda – também repetida no anúncio a José (cf. Mt 1,18-25) – implica toda a história de Israel, acumulando dezenas de passagens paralelas e alusivas. Era a linguagem da esperança, mas também do sofrimento, devido às infidelidades históricas e graves falhas. A esposa de Israel parecia ter se tornado estéril devido aos muitos fracassos resultantes de alianças políticas e cultuais com os povos vizinhos. Ela não tinha mais a fertilidade dos tempos da fidelidade, e Maria parecia se identificar com a Filha de Sião estéril e sem companheiro, sem a alegria de ver outro descendente de Davi, um da casa de Jacó, liderar o povo em direção à paz e santidade.

Nessa perspectiva, pode-se conectar a profunda perturbação de Maria, sua intensa reflexão e sua resposta com o que Jesus dirá sobre si mesmo – ou pelo menos insinuará por meio de gestos e estilos em muitas ocasiões – como esposo de Israel. Há muitas ocasiões em que Jesus também retomará a simbologia nupcial desenvolvida pelos profetas sobre a relação amorosa e conjugal entre Deus e Israel, com traições e reconciliações (cf. Oseias, DeuteroIsaías, Ezequiel; e principalmente o Cântico dos Cânticos).

Essa esterilidade secular de todo o povo, Maria a sente como sua, se imerge nela, é acolhida em seu coração com a mesma dor que todos compartilham, juntamente com a resistente esperança dos piedosos: como será visto em Zacarias, Simeão, Ana e muitos outros. A resposta ou explicação do anjo pode ser lida na mesma perspectiva: a simbologia da sombra do Espírito, a santidade de Deus que toma forma e visibilidade, a dignidade sublime do nascituro, humanamente impossível, o apelo à esterilidade miraculosamente desfeita pelo divino, são todos padrões do Antigo Testamento que ressoam e se ligam à preocupação da “esposa Israel” – Maria, pela infertilidade e falta de um companheiro íntimo vital.

Na resposta final de Maria, encontramos não apenas uma disposição pessoal para se entregar completamente às demandas da Palavra do anjo, mas também para assumir toda a Palavra da Aliança dos Pais, para que ela se cumpra nela em benefício de todos. Ela se declara disposta a ver sua existência entrelaçada de maneira única com o que conhece e medita da memória coletiva, das expectativas, da esperança e da confiança. Em seu consentimento em servir a Palavra – “aconteça comigo conforme a tua palavra (rèma)” – há uma disposição para ser o local do cumprimento das antigas esperanças e promessas.

A, “rèma” é palavra-evento, no sentido mais profundo, e não apenas como uma palavra, expressão, som ou terminologia. Vejo uma confirmação disso na saudação exultante que sua prima Isabel lhe grita: “Bem-aventurada aquela que acreditou no cumprimento das palavras do Senhor” (Lc 1,45). A frase está no final do cântico de Isabel, no qual várias simbologias da presença do Senhor na história do povo também são evocadas (principalmente a passagem da arca do Senhor, a alegria pelo ventre grávido, a alegria incontida, o impulso do Espírito, o elogio entre as mulheres, etc.). Portanto, deve ser interpretada nesse contexto e não como um elogio pessoal dirigido apenas a Maria.

Neste caso, Maria representa Israel dos justos e piedosos que acreditaram na fidelidade de Deus, apesar das trevas e das esperas angustiantes, ela é a esposa fecundada, amada com “amor eterno” (Is 54,8), não mais rejeitada. Isabel se torna intérprete dessa certeza, de que Deus seria fiel ao seu povo, e em Maria ela vê e reconhece que essa fidelidade se tornou um presente para todos. Na disponibilidade de Maria, a resposta em benefício de todos. Apenas duas mulheres que acreditaram, meditaram e viveram o fio condutor das Escrituras, ou seja, ouviram, amaram, se identificaram com a antiga promessa impregnada na Palavra transmitida de geração em geração, poderiam ver essa unidade, poderiam ir além de uma alegria pessoal, embora legítima e íntima.

Exegese silenciosa de Maria

Nós meditamos e continuamos a meditar com corações surpreendidos e contemplativos sobre o evento do nascimento do Filho do Altíssimo. Cada um é impactado e saboreia em seu coração muitos aspectos que mereceriam comentários sem fim – e os séculos nos proporcionaram inúmeros – porque os eventos são “graça sobre graça“, como diz João (cf. Jo 1,16). Eu me limito a comentar com algumas ênfases o estilo silencioso e reflexivo de Maria em todos os eventos relacionados à infância.

Lucas registra duas vezes que Maria refletia e buscava compreender. Após a visita dos pastores, é dito: “Maria, por sua parte, guardava todas essas coisas (synetèrei tà rèmata symbállousa en tè kardía), meditando-as em seu coração” (Lc 2,19). E após encontrar o menino Jesus no templo, é dito: “Sua mãe conservava todas essas coisas (dietèrei pánta ta rèmata) em seu coração” (Lc 2,51). Mas em torno da mãe reflexiva que guarda memórias, com um coração que se surpreende e também busca uma explicação unificada, temos outros que fazem o mesmo.

Por exemplo, quando Zacarias volta a falar para dar o nome de João ao filho, os vizinhos ficam surpresos e com medo, e “todos os que ouviram (ta rèmata) puseram-nos em seus corações” (Lc 1,66). Os pastores, antes de irem para Belém, debatem se vale a pena ir “ver aquela palavra-evento (to rèma) que aconteceu” (Lc 2,15) e depois “contarão a todos sobre o que (tou rèmatos) viram e ouviram” (Lc 2,20). Portanto, há também o espanto: primeiro, o de Isabel (Lc 1,41-45) ao ser visitada pela Mãe do Senhor, apresentando-se quase como a nova arca santa que atravessa estradas montanhosas para compartilhar com sua prima a alegria de uma maternidade extraordinária que as beneficiou.

Depois, o espanto dos parentes de Isabel e Zacarias quando o filho nasce: eles se alegraram com ela (synékairon autè) (Lc 1,56). Todos que ouvem os pastores contarem sua história tão fora do comum também ficam maravilhados: “eles se admiravam com as coisas que os pastores diziam” (Lc 2,18). Ainda mais no templo, diante da exultação de Simeão, mãe e pai “se admiravam (thaumázontes) das coisas que eram ditas a respeito dele” (Lc 2,33). Isso se refere ao nascimento e aos primeiros dias. Mas também é dito que Maria refletia com um coração vigilante mesmo após o episódio do reencontro no templo.

Aqui também encontramos espanto e maravilha (exístanto: pode ser traduzido como pasmo) dos mestres do templo (cf. Lc 2,47). Mas também é observado que os pais “não entenderam a palavra (to rèma) que ele lhes disse” (Lc 2,50). Imediatamente depois, “sua mãe conservava todas as palavras-eventos (pánta ta rèmata) em seu coração” (Lc 2,52).

Gostaria de comentar essa atitude coletiva de espanto e reflexão, incompreensão e de guardar no coração. Não é apenas de Maria, como ouvimos, mas de muitos. Isso já indica a importância: era o santo hábito judaico de colocar no depósito do coração e guardar com cuidado e admiração o que estava acontecendo. Porque todos os eventos eram ao mesmo tempo palavra e obra, acontecimento objetivo e sinal misterioso, ele refletiam para encontrar sua conexão em um horizonte que explicasse significado e propósito.

Maria vive com todos a dificuldade de entender, mas também acompanhada por ela pelo espanto, surpresa, sensação de medo e maravilha. Porque esse é o verdadeiro modo bíblico de receber a Palavra e guardá-la no coração. Com espanto, gerado pela sensação de sua fragilidade e efemeridade, atravessado pelos sinais de Deus que se aproximam, que se tornam visíveis e audíveis, mas que permanecem bem além, obrigando a ponderar no coração, a dialogar para compreender, a refletir para não deixar escapar conexões e reflexos inesperados.

Um povo inteiro de humildes que reflete e se questiona, que é surpreendido pelo espanto e ao mesmo tempo deposita no coração ta rèmata, para que nada desapareça, mas deixe uma impressão duradoura, se torne uma descoberta aberta a novos horizontes. Eu vejo Maria nessa atitude, certamente como a virgem-mãe que não passa superficialmente pelas coisas, mas também como companheira e herdeira da melhor tradição judaica: a de se surpreender e se maravilhar, de ruminar e lembrar, de vigiar e meditar, para extrair significados verdadeiros e inspirações de vida.

Isso é viver de acordo com a Palavra e o Espírito: uma estabilidade mental que se familiariza com os eventos e memoriza bem os fatos e busca as conexões que os tornam um projeto, um tecido, um evento completo e unificado. Uma estabilidade do coração que se transforma em preocupação única, uma linearidade de amor e desejo, de valores e expectativas: este é o verdadeiro coração do israelita, todo impregnado pelo reflexo dos rèmata.

Mas existe outra estabilidade em que gostaria de me concentrar: é a estabilidade corporal. Ela complementa as outras mencionadas e adquire um significado especial nas três décadas da presença de Jesus em Nazaré. Talvez tenhamos ignorado muitas vezes o valor teológico deste longo período vivido em Nazaré por José, Maria e Jesus. As frases sobre Jesus crescendo em estatura, idade e graça, e o espírito reflexivo de Maria, são tudo o que nos resta em mente, e Lucas nos informou.

É muito pouco para não termos a sensação de que talvez tenham sido anos quase perdidos para a redenção: por que essa existência longa, silenciosa, comum e anônima do Redentor, quando o mundo inteiro esperava o cumprimento das promessas e a expansão universal da luz para as nações?

Nazaré: a Palavra enraíza-se na simplicidade

Da vida da Sagrada Família em Nazaré até o momento em que Jesus se separou publicamente como adulto, por volta dos trinta anos, sabemos muito pouco. É evidente que todos conheciam a profissão do pai (carpinteiro/téktonos, título também atribuído a Jesus: cf. Mt 13,55; Mc 6,3), e a mãe não parecia se destacar com nada de particular, mas participava da religiosidade de todos, indo em peregrinação a Jerusalém todos os anos com parentes e conhecidos. Apenas Lucas menciona duas vezes o crescimento de Jesus.

Após o retorno da apresentação no templo para o resgate e purificação de Maria, diz-se: “O menino crescia e se fortalecia, cheio de sabedoria, e a graça de Deus estava sobre ele” (Lc 2,40). Aos doze anos, quando começou a ser sujeito à lei (cf. Lc 2,42), ele participou da peregrinação da cidade de Nazaré a Jerusalém para a festa da Páscoa. Então, ele tomou a iniciativa imprevisível de ficar em Jerusalém sem avisar os pais, causando-lhes grande preocupação quando perceberam que ele não estava na caravana. Depois de encontrá-lo e expressar sua angústia, como sabemos: “Ele voltou para Nazaré e estava sujeito a eles… E Jesus crescia em sabedoria, idade e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2,51s).

Eu gostaria de refletir com vocês sobre esse longo período de três décadas, do qual sabemos muito pouco, mas podemos supor muito, mesmo sem acreditar nas maravilhas dos apócrifos. São anos que não têm um valor teológico e redentor menor do que os últimos três anos, os públicos. E, acima de tudo, são substanciais para o discurso de receber a Palavra como Maria. Normalmente, pensamos que essa recepção ocorre principalmente na parte inicial (episódios da infância) e depois na parte da vida pública de Jesus.

Na parte inicial, na verdade, há poucas palavras de Maria: talvez trinta no total, excluindo o Magnificat. Certamente, na vida pública, há muitas palavras sagradas pronunciadas por Jesus – mas apenas nove são as palavras de Maria (em Caná: Jo 2,3.5) – no entanto, não são a única maneira de falar de Jesus nem a única circunstância para ouvir e receber a Palavra de Deus. Como se o Verbo fosse a Palavra de redenção e salvação apenas quando age e fala em público.

Razão pela qual que podemos afirmar que em Nazaré, teríamos como um parêntese, uma passagem de espera, uma referência para mais tarde, tão longa. Acredito que devemos reavaliar esse longo período, especialmente na perspectiva do título de nossa discussão: certamente é o tempo em que Maria reconsidera e vigia com um coração reflexivo o que viu e ouviu, e que não conseguiu entender completamente (cf. Lc 2,50). Ela é como a boa terra em que a semente da Palavra caiu, e na perseverança traz o fruto que deve crescer em quem tem um coração nobre e obediente (cf. Lc 8,15). Mas gostaria de ir além dessa visão idealizada, quase romântica.

Maria, nesses trinta anos, não consegue se destacar das outras mulheres de Nazaré, e nem Jesus tem atitudes que possam fazer seus conterrâneos pensar que há algo de extraordinário nele. Isso fica evidente quando eles se maravilham com a sabedoria e a ousadia que ele demonstra em um sábado famoso na sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-30).

Onde estava essa recepção e frutificação da Palavra, em que consistiria?

Maria havia sido chamada para ser mãe da Palavra de Deus: em seu ventre, de maneira única e irreplicável, misteriosa e surpreendente, ela gerou Jesus, “aquele que salvará o povo de seus pecados” (Mt 1,21), introduzindo-o nas grandes tradições judaicas de imposição de nome, circuncisão, apresentação como primogênito no templo, várias práticas religiosas judaicas. Com ele, de acordo com o relato de Mateus (cf. Mt 2,13-23), ela também experimentou o paradigma do antigo êxodo para o Egito e o retorno do Egito. Ela certamente vivenciou com ele a prática diária judaica de várias formas de oração, e cada família tinha a responsabilidade de ensinar aos filhos essa complexa ritualidade diária. No momento apropriado, ela o introduziu entre os “filhos da lei” (bar mizpat), com as obrigações associadas, como mencionamos.

Mas eu me pergunto de onde vinha essa sabedoria e graça na qual se repete que ele crescia?

E que sabedoria e graça eram essas, na realidade?

Não podemos pensar que são qualidades “infundidas” do céu, às quais Maria era estranha. Em vez disso, é nesse breve destaque, que sempre interpretamos em um sentido “cristológico“, que eu quero ver uma nota “mariana“. O que Jesus aprendeu da tradição, da sabedoria popular, das Escrituras, das promessas de Deus e das expectativas populares, podemos deduzir pelo que ele faz e diz na vida pública. Não é necessário dar muitas explicações sobre esse ponto, todos sabem muitas coisas.

Mas quem lhe transmitiu essa sabedoria e graça diante de Deus e dos homens?

Talis Mater, talis Filius: essas décadas longas e lentas foram uma escola lenta de escuta e obediência à grande tradição em todas as suas exigências e nuances, uma escola mútua entre Mãe e Filho, para transmitir e repensar, para interpretar e permanecer capaz de liberdade e flexibilidade. Para encontrar, sobretudo, um novo rosto do Deus dos Pais: a maternidade excepcional de Maria também afetou sua concepção da imagem de Deus. O âmago disso permanece no cântico do Magnificat, mas também em todas as parábolas e linguagem, gestos e escolhas do Filho, vemos que a imagem do Pai é a da misericórdia e da ternura, e não da lei rígida, das observâncias ritualizadas, das ameaças destrutivas. A partir da linguagem do filho, você conhece a mãe, de suas ações, de seu estilo, você encontra a mãe. Sempre é assim.

Na escuridão e no silêncio, na simplicidade mais comum, nas relações normais típicas de qualquer aldeia, a personalidade madura de Jesus foi moldada, em conformidade com o que os pais conseguiram transmitir, ensinaram vivendo, celebraram junto com todos. Esse “crescer interior” silencioso de Jesus na carne humana, na vida sem distinções, nas relações e humores, nas exclusões sociais e nos deveres religiosos – não só os de Nazaré eram considerados um povo desprezível, mas a Galileia era vista com desprezo devido à mistura da população – não é tempo perdido, mas a fertilidade da Palavra segundo o Espírito, um tempo de redenção em um sentido profundo e original.

A coabitação fraterna em Nazaré de Jesus pode parecer apenas uma passagem (embora longa) para a plena revelação do Filho de Deus em poder. No entanto, devemos vê-lo como a mais verdadeira irradiação da presença de Deus entre nós: operosa, escondida, fraterna, religiosa, a essência de nossa humanidade. É nesse ponto que gostaria de me deter um pouco mais.

O Filho eterno, em Nazaré

Jesus de Nazaré não é de forma alguma a ‘parte humana‘ da encarnação. Jesus de Nazaré ‘é‘ a encarnação do Filho Unigênito. Jesus ‘é‘ o Filho. E reciprocamente: Jesus de Nazaré é o único Filho eterno, do único Deus. Jesus de Nazaré não é o ‘efeito humano‘ da encarnação do Filho de Deus, mas é precisamente a efetividade humana de sua filiação divina. Não é o homem que o Filho assume e habita, nem o Filho que passa pelo humano em vista da missão redentora e se despede dela após a missão cumprida. Jesus de Nazaré é para sempre o Filho de Deus. O mesmo Jesus que nasceu de Maria e viveu anonimamente por muito tempo, para que o dom fosse perfeito, como dom.

Na teologia e na espiritualidade, introduziu-se uma estranha ruptura entre Jesus de Nazaré e o Filho de Deus, como se Jesus – especialmente em sua vida oculta em Nazaré – fosse apenas um meio, um intermediário para chegar ao Filho, e não fosse realmente o Filho que habita entre nós, o doador da vida, o intérprete das Escrituras.

Temos que integrar “Jesus de Nazaré” no horizonte de uma cristologia integral “Jesus de Nazaré“. Jesus em Nazaré é Jesus de Nazaré na realidade e no sacramento de sua pura presença salvífica entre os homens. Daí decorre que a obra da encarnação é como uma irradiação fraterna da presença salvífica, a pura presença do Senhor é a razão final, e não apenas uma condição prévia. A realidade teológica do ser e agir salvífico de Jesus, o Filho, não pode ser reduzida à sua fase de pregação pública, milagres e morte na cruz.

E até mesmo a experiência da Igreja deve ser revista neste ponto, no sentido que devemos compartilhar radicalmente os lugares obscuros da existência em vista da persuasividade do amor de Deus. Podemos chamá-lo de santidade hospitaleira, uma forma da Igreja em que a dignidade da pessoa humana se torna o conteúdo do anúncio e da realidade do reino, mesmo sem palavras. O anúncio do reino dos céus, que já está no meio de nós, encontra em Nazaré sua veracidade na experiência salvífica, e não apenas de residência, e também no paradigma ao qual a Igreja talvez devesse olhar um pouco mais para ser uma verdadeira fraternidade dispersa entre as nações.

À luz desta afirmação teológica, podemos redescobrir a grande importância de Maria e falar dela como alguém que ouve e vive a Palavra, vive com a Palavra, cresce com a Palavra salvífica do Filho que está ao seu lado e é presença salvífica no anonimato, fraternidade, simplicidade, como todos. Este é o “peregrinar na fé” de Maria. E ali, Jesus amadurece, junto com ela e todos ao seu redor, uma fidelidade completa ao projeto do Pai de “estar no meio do povo“, de se considerar “Deus do povo” e de fazer do povo a “sua família“.

E se a nova evangelização tentasse ser também uma recuperação tenaz, em palavras e ações, do longo momento-Nazaré da Encarnação de Deus entre os homens, para que a proporção divina da missão do Filho recupere sua integridade?

Esta forma evangélica de memória do Filho em Nazaré, por tanto tempo, com uma simplicidade tão radical e companhia de vida e linguagem, sentimentos e experiências, Maria também a viveu, foi sua mestra e discípula. Com razão Santa Teresa do Menino Jesus amava tanto a simplicidade de Maria de Nazaré, onde certamente as virtudes mais simples eram também as mais vividas e enraizadas. Ela escreveu, alguns meses antes de morrer, em seu último poema, intitulado: “Por que te amo, Maria“: “Eu sei que em Nazaré, Mãe cheia de graça, você era pobre e não queria mais nada: nem milagres, êxtases ou arrebatamentos enfeitavam sua vida, Rainha dos santos! Na terra, há muitos pequenos que podem olhar para você sem medo. A maneira comum, Mãe incomparável, você quer seguir e guiá-los ao céu“.

Conclusão

Gostaria de avançar com vocês e meditar sobre muitos outros passagens evangélicas que são muito inspiradoras. Pensemos na preocupação em manter a festa continuando em Cana, com a alegria dos esposos e na obediência dos servos “ao que ele disser” (Jo 2,1-12), até à sequência silenciosa (mas inegável) ao longo das estradas da vida pública (Lc 8,1-3), até o desconcerto quando Jesus não quer receber sua mãe e parentes que desejavam vê-lo e pedir-lhe mais equilíbrio (Mc 3,21). Essa aparente rejeição é apenas um convite a ver na mãe e nos amigos da família o início de uma nova relação familiar, fruto da convivência que transformou e iluminou, ampliou horizontes e encontrou raízes sólidas na vida cotidiana (Mc 3,31-35).

Pensemos também nas duas grandes imagens do “stabat” junto à Cruz (João 19,25-27) e da presença de Maria no Cenáculo, em oração e também em diálogo com os discípulos ainda incertos e temerosos (At 1,14). Espero ter mostrado algo novo e diferente em fidelidade à Palavra, que é sempre nova e sempre imprevisível em suas luzes e provocações. Procuramos aprofundar, com intuição profética, com coração contemplativo e com mãos de solidariedade fraterna a verdade que nos foi revelada pelo Filho de Maria!

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