A plural presença de Maria na Igreja

Introdução

São Pio X, em sua carta encíclica “Ad diem illum”, escrevia: «pode-se dizer que Maria, ao carregar em seu ventre o Salvador, também carregou todos aqueles cuja vida estava contida na vida do Salvador. Todos nós, portanto, que estamos unidos a Cristo e, segundo diz o Apóstolo, “membros do Corpo d’Ele, de sua carne e de seus ossos» (Ef 5,30), saímos do ventre de Maria, à semelhança de um corpo unido ao seu cabeça. Assim, por uma razão toda espiritual e mística, somos chamados filhos de Maria, e ela é a mãe de todos nós».

A Virgem Maria, portanto, não é apenas “ouvinte” da Palavra, como é todo homem, mas é também acolhimento pleno da Palavra de Deus na fé, no corpo e em toda a sua própria existência. Ela, portanto, mais do que qualquer outra criatura, participa e coopera na obra da Salvação realizada pelo Filho e está plenamente inserida no mistério da Igreja, daqueles, isto é, que creem n’Ele e o seguem no caminho da vida, cumprindo a vontade do Pai, animados pelo Espírito, na sequela discipular. Ela é a primeira, na qual se realiza essa profunda e transformadora ligação com o Deus Trinitário, que a torna também mãe na plenitude de significado, de uma multidão de filhos, aos quais indica com o exemplo e a solicitude materna o caminho a seguir.

Ligação de Maria com o Deus Trinitário

O profundo vínculo de Maria com a Santíssima Trindade, fundamental para compreender o seu relacionamento com a Igreja, manifesta-se em uma substancial atitude de disponibilidade para com Deus e docilidade à sua graça, por meio da qual ela se torna uma ícone triádica da bondade misericordiosa do Pai, da obediência redentora do Filho e da obra santificadora do Espírito. Ela é a consagrada a Deus de modo perfeito, a Virgem do ouvir, a Virgem que acreditou, a Virgem oferente que, acolhendo e aceitando a Palavra, oferece a si mesma a Deus Trindade.

Esta relação com Deus, essencialmente baseada na fé, não foi passiva, mas estimulou nela um dinâmico envolvimento na missão do Filho como mãe, discípula e sócia: a sua fé tornou-se amor e obra materna, um “fazer” contínuo cuja fonte permanece sempre o seu ser “formada” pela Trindade Santíssima. Já antes da criação do mundo, Maria está presente no mistério de Cristo como aquela que o Pai escolheu como mãe de seu Filho na Encarnação e que também o Filho escolheu, confiando-a ao Espírito de santidade. Através da sua obediência de fé ao Pai, da sua comunhão com o Filho e da sua correspondência ao Espírito Santo, Maria coopera com toda a Trindade na nossa Salvação.

A sua perfeita obediência ao Pai implicou primeiramente o pleno abandono à vontade divina na fé operosa que foi como um diálogo constante e ininterrupto entre o chamado de Deus e a resposta de Maria, entre eleição e fidelidade, graça e liberdade. Neste abandono de fé à vontade do Pai, a existência da Virgem foi como uma jornada para a união cada vez mais profunda com Deus. Nisso, Maria, na plenitude da sua experiência filial, torna-se o modelo da espiritualidade cristã: viver como filhos do Pai.

A obediência ao Pai significou para Maria, sobretudo, gerar o Filho no tempo, que Ele gerava desde a eternidade, como mediador entre Deus e os homens. Ela torna-se, portanto, a imagem misericordiosa e materna de Deus, “mediadora” da encarnação salvífica do Filho. Ao acolher o Filho e conviver com ele, Maria torna-se parte integrante da encarnação do Verbo, a testemunha privilegiada deste mistério e da verdadeira humanidade de Cristo. Maria inseriu na história o Filho do Pai, guiou-o, educou-o, seguiu-o, por isso essa acolhida e convivência com Cristo foi para ela uma maravilhosa experiência de alegria e ternura, mas também um diário e laborioso conhecer o Filho na fé e por meio da fé.

Como já sublinhamos, a sua foi uma fadiga do coração, como a travessia de um véu, através do qual ela se aproximou do invisível e viveu na intimidade com o mistério. Por isso, Maria, além de mãe, é também, desde a Anunciação até o Calvário, sobretudo discípula de Cristo. A sua vida é um contínuo aprender do Filho e compreender o Filho. Para isso, ela teve de remover os esquemas criaturais para se inserir na perspectiva de Deus, de modo que a sua existência foi como uma dinâmica aventura de descoberta do verdadeiro rosto do Filho na história e na humanidade. Maria, intimamente unida a Cristo, é, portanto, a perfeita ícone não somente como mãe, mas sobretudo como fiel e perseverante discípula.

A relação de Maria com a Trindade é completada pela sua perfeita correspondência à graça do Espírito Santo. Maria é como moldada pelo Espírito que a tornou uma nova criatura. Ao acolher o Espírito, ela viveu no Espírito e segundo o Espírito, tornando-se assim a “criatura espiritual” por excelência, a “Toda Santa”. O Espírito a encheu plenamente dos seus dons, cujos frutos de santidade são o amor, a alegria, a bondade, a paz, a paciência, a fidelidade, a mansidão, o domínio de si.

Maria não se compreende, sem a relação com o Pai, com o Altíssimo que envia a ela o Verbo eterno, sem o relacionamento contínuo com o Filho Unigênito que se torna seu filho, sem a referência ao Espírito que, como dinamismo de amor, torna possível a concepção de Cristo em seu ventre virginal. Este referencial trinitário é captado pelo Vaticano II, que chama Maria de «Mãe do Filho de Deus, e portanto filha predileta do Pai e Templo do Espírito Santo» (Lumen Gentium 53).

A plural presença de Maria na Igreja

A referência à Santíssima Trindade fundamenta o profundo vínculo que Maria tem com a Igreja fiel, a humanidade e a história. A inefável proximidade com a Trindade e com o Verbo Encarnado, a singular e exemplar cristiformidade de Maria fazem com que a esplêndida fé martirial da Mãe do Redentor permaneça na Igreja, em virtude de sua “presença materna” e do seu “exemplo”. A Igreja, ao proclamar, celebrar e testemunhar a fé e a acolhida do Deus trinitário revelado em Cristo, na história e em sua jornada rumo ao eschaton salvífico, manifesta sua dimensão apostólica e petrina, bem como seu inegável perfil mariano.

Já na Sagrada Escritura, Maria é prefigurada como a Filha de Sião, representante de todo o povo de Israel, de modo que, no momento da Encarnação do Verbo, o seu “sim” pessoal torna-se o “simda humanidade a Deus que vinha salvá-la. Esse “sim” foi reafirmado por Maria junto à Cruz, onde se tornou, por vontade do Crucificado, a mãe espiritual dos discípulos, reunidos na nova Jerusalém que congrega os dispersos filhos de Deus que é a Igreja, da qual é, como veremos, a perfeita ícone e o primeiro e mais nobre membro.

O sensus fidei dos fiéis de todas as épocas sempre percebeu o estreito vínculo de Maria com o Povo de Deus e Paulo VI confirmou-o solenemente em 21 de novembro de 1964, proclamando a Mãe do Senhor também “Mãe da Igreja”. O Concílio Vaticano II vê justamente na maternidade divina de Maria e na sua cooperação na Salvação o fundamento desse seu vínculo ontológico com a Igreja, cujas bases, em resumo, são estas: surge do mandamento de Cristo na Cruz; é consequente à maternidade divina; é um prolongamento da maternidade biológica de Cristo Cabeça em seu Corpo espiritual que é a Igreja.

Embora Maria seja mãe dos indivíduos discípulos que gera e forma em colaboração com o Espírito Santo, sua maternidade se exerce na Igreja como tal e, portanto, não deve ser interpretada apenas em sentido individualista, mas numa perspectiva comunitária. O Prefácio da missa de Maria Virgem Mãe e Mestra Espiritual afirma: «intimamente associada ao mistério de Cristo Redentor, continua a gerar com a igreja novos filhos que atrai a ti com seu exemplo, e com a força do seu amor conduz à caridade perfeita. Na sua escola redescobrimos o modelo da vida evangélica, aprendemos a amar-te acima de tudo com o seu coração e a contemplar com o seu espírito a tua Palavra feita homem, para servi-la com a mesma solicitude nos irmãos».

Podemos então afirmar que a Igreja, olhando para a mãe modelo e ícone perfeita, aprofunda sua fidelidade ao Senhor, seguindo a criatividade e a dinâmica da virgem-mãe, também ela pretende ser mãe inteiramente de Cristo e inteiramente para a humanidade. Reunindo-se sob o olhar de Maria sua mãe, descobre ser uma única família, imitando a mãe, também ela busca ser fiel ao seu Senhor, perseverando na fé até a Cruz, recolhendo o canto de libertação de Maria, serve à libertação de todo ser humano ajudando-o a se realizar como filho de Deus, libertando-o das injustiças e promovendo-o integralmente.

Assunta ao céu e colocada em uma condição única e singular com o seu corpo glorificado e, portanto, incorruptível, glorioso, poderoso e pneumático, Maria está plenamente investida pela força do Espírito Santo e pode operar em favor da Igreja de modo eficaz e até milagroso, pois participa da glória e do poder do mesmo corpo glorioso de Cristo. Esta sua completa transformação no Espírito permite-lhe ser uma “presença” nos diferentes tempos históricos e espaços culturais, sem estar circunscrita e limitada aos locais individuais, e permite-lhe exercer o constante exercício de sua maternidade espiritual em favor de todos os homens, pois nada impede a universalidade de influência na comunicação da graça divina.

Maria brilha, portanto, diante da Igreja e do mundo, como a perfeita ícone da nova humanidade recriada pela graça divina, na qual se realiza, em vez do “coração de pedra”, o “coração de carne”, novo, manso e misericordioso como o de Cristo. Ela é a criatura recriada segundo o projeto original de Deus, a nova Eva, ao lado do novo Adão, pois foi a primeira entre as criaturas a viver com este coração novo, cuja expressão mais completa é o amor.

Ter, como Maria, um “coração novo”, significa ter os mesmos sentimentos de Jesus, ou seja, amar a vida e o dom da vida; anunciar o reino de Deus através dos sinais concretos do amor universal, da atitude de acolhida e misericórdia para com todos, viver e sofrer como e com Jesus uma paixão inocente e redentora, doar a vida pelo Senhor, realizando, no dom virginal e total, a maternidade universal. Maria, mulher de coração novo, é, em seu ser a imagem do Coração de Cristo, o modelo da humanidade renovada que, reconduzida pela graça à sua dignidade primordial, renova a face da terra e inicia a vinda dos “últimos tempos” em que todos os homens gozarão diante de Deus a igual dignidade de filhos.

Esta presença de Maria na Igreja, tão articulada e tão profunda a ponto de impregnar sua própria natureza ontológica, o mesmo modo de crer e o mesmo caminho de fidelidade ao Senhor, pode ser definida como uma presença multiforme “transversal”. A Virgem é a presença transversal porque ao longo dos séculos Maria esteve sempre presente na Igreja, atravessando sua vida, como membro, como irmã que a precede no caminho da fé, como mãe que coopera no nascimento de cada homem e cada mulher à vida da graça e à sua educação e crescimento espiritual, como guia que indica o caminho da pátria, como voz suplicante e reconfortante patrona.

Somente no céu poderemos entender clara e profundamente o que a Igreja deve a Maria, quanto à inteligência da fé, mas já agora, apenas mostrando a si mesma, introduz-nos no mistério do que a Igreja é em sua essência: uma pura obra da graça do Deus Trinitário.

Maria e a missão apostólica da Igreja

A cooperação de Maria na Salvação e a sua presença multifacetada na Igreja têm um aspecto de vida apostólica e ação, dado que a sua experiência espiritual se orienta para fora, para os outros, como expresso na visita a Santa Isabel e nas bodas de Caná. Maria não atua apenas dentro da Igreja, mas se expande pela história da humanidade, de modo que com a sua presença ela se manifesta não só como mãe da Igreja e dos cristãos, mas também como Mãe universal, modelo real de todo ser humano. Ciente desta sua “missão” apostólica e universal, a Virgem impulsiona e incentiva todos, cristãos e não cristãos, a seguir seus exemplos e a fazer o que Deus pede à humanidade.

Para nós, Igreja – cristãos e não cristãos, o conhecimento, a contemplação e o encontro com Maria se encarnam em um estilo de vida que torna “mariana” a nossa ação não apenas individual, mas também eclesial. As linhas essenciais deste estilo de vida são: a “linha sacramental”, pois seguindo o exemplo de Maria, aprendemos a colaborar com a graça e, confiando em sua orientação e ajuda, vivemos intensamente nossa união com Cristo por meio de uma intensa vida sacramental.

A “linha da comunhão na Igreja”, pois seguindo o exemplo de Maria e com sua ajuda promovemos uma atitude de comunhão entre os batizados, feita de disponibilidade para o diálogo, solidariedade espiritual, compreensão e união de todos os membros do Corpo Místico de Cristo.

A “linha da vida”, pois junto com a Virgem, que acolheu e defendeu a vida de Cristo, criaremos uma cultura da vida, feita sobretudo de virtudes maternas, ou seja, amor, ternura, acolhimento dos outros, contrastando com a cultura dominante no mundo de dureza impiedosa, guerra, tensões, ódio, morte, divisão e violência.

A “linha da experiência pascal”, pois seguindo o exemplo de Maria aceitaremos a dor, o sofrimento e a morte como elementos que a fé considera instrumentos de salvação e seremos impulsionados a adotar soluções de vida onde reina a dor e a morte abre seus portais ameaçadores.

A “linha da missão e da fecundidade evangélica”, pois animados pelo mesmo ímpeto apostólico de Maria que levou Cristo recém-concebido a Isabel e apresentou aos pastores, aos Magos e ao mundo o Filho de Deus vindo para salvar os homens, demonstraremos com ações a realidade das bem-aventuranças e a eficácia real e visível do Evangelho, favorecendo assim a sua acolhida.

Conclusão

A Mãe do Senhor tem um vínculo estreito e indissolúvel com a vida espiritual e cristã da Igreja e com o seu compromisso sócio-antropológico, dado que o “constitutivo dogmático” e o “constitutivo ético” não podem ser separados. Justamente a divisão entre o ensinamento da fé e a prática da vida é, segundo a constituição pastoral Gaudium et spes, um dos erros mais graves do nosso tempo. O ponto nodal que realiza a simbiose entre o dado de fé e a vida, entre Maria e o compromisso-testemunho, é a abertura ao diálogo com o Deus Trinitário, acompanhada pelo ir ao encontro do homem necessitado de salvação espiritual e social e pela contribuição ativa à sua libertação e plena realização.

Com a ajuda e a identificação nossa com a Virgem, a Igreja e cada cristão devem viver a experiência cristã de forma espiritualmente fecunda, injetando no mundo seiva de vida cristã. Tornando-se páginas vivas do Evangelho, pois aprenderão com ela e como ela a valorizar no coração as palavras e os atos de Jesus para vivê-los e realizá-los na história individual, social e eclesial. O estilo “mariano”, dessa forma, aparecerá como o cumprimento supremo do ser cristão, ou seja, pessoas e comunidades – Igreja verdadeiramente cristã.

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