E o discípulo a acolheu na sua intimidade (Jo 19,27)
Introdução
A acolhida da Mãe do Senhor é uma das características que define o verdadeiro discípulo de Cristo: “a partir daquela hora, o discípulo a acolheu na sua intimidade” (Jo 19,27), ele a acolheu em sua vida, em sua experiência espiritual inseparavelmente ligada e abençoada pela memória do Mestre.
Quem é o discípulo amado: é João ou não?
Os exegetas têm argumentos a favor e contra e, não sendo exegeta, não me sinto capaz de entrar nesta controvérsia, que tem, de qualquer forma, um interesse secundário em relação ao significado do texto. Portanto, usaremos indiferentemente ambas as interpretações. No texto evangélico, diz-se que o discípulo foi confiado a Maria, como se ainda precisasse de atenção, mas não se observa que ele tenha realizado algo. Em última análise, é um pouco como Lázaro: não nos é dito que tenha feito algo, apenas sabemos que Jesus o amava: “As irmãs mandaram dizer a ele: ‘Senhor [ … ], o teu amigo está doente‘. ‘Então, os judeus disseram: ‘Vê como o amava!‘” (Jo 11,336).
O discípulo aos pés da cruz tem, como único título de nobreza para entrar plenamente nas Escrituras, o amor preferencial e amizade de Jesus por ele. Esta é a sua grandeza: “Se alguém me ama, ele guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós iremos a ele e faremos nele morada” (Jo 14,23). Este é o espaço interior e espiritual, o ambiente vital que caracteriza a existência do discípulo amado como discípulo do Senhor. Nele, cada um de nós se sente digna e verdadeiramente representado. Na verdade, somos o que somos porque Jesus nos ama, esta é a nossa maior nobreza, nossa segurança, nossa rocha, nossa força, nossa dignidade e herança. Todo o resto é o nosso programa, que pode ser desmentido pelas circunstâncias.
A entrega de Maria
Quando Jesus, antes de morrer, confiou Maria a João, estabeleceu claramente um relacionamento de filiação e maternidade. Em vez de recomendar a João que cuidasse da Mãe que ficaria sozinha, Jesus disse: “Eis o teu filho [ … ]. Eis a tua mãe”. É um relacionamento igual ao que existe entre Maria e Jesus.
É significativo que nenhum outro relacionamento desse tipo seja estabelecido para nenhuma outra mulher. No entanto, sob a cruz estavam Maria de Magdala, Maria mãe de Tiago, o menor, e de José, Salomé (cf. Mc 15,40), Maria de Cleofas (cf. Jo 19,25). No entanto, Jesus estabelece entre a Mãe e o Discípulo amado, preferido, um relacionamento privilegiado e recíproco, que depois deve ser estendido a todos os discípulos do Evangelho. Estudos recentes sobre o versículo de João 19,27b observam que o texto grego original do IV Evangelho não diz que o discípulo acolheu Maria em sua casa, como geralmente era entendido, mas sim “em suas próprias coisas (eis tà ldia).
A palavra grega em latim é “proprius“, que, por si só, não é um comparativo de “prope” (próximo), mas vem da expressão jurídica latina “pro vivo“, ou seja, para uso privado, para meu uso. “Proprius” então indica o que me pertence, o que me diz respeito diretamente e pessoalmente. O discípulo não simplesmente cuidou da Mãe do Senhor, mas a “recebeu entre as suas coisas (eis tà Idia), em sua casa“.
O que isso significa?
Se fosse um discípulo que seguia Jesus – mesmo que o evangelho não mencione seu nome, geralmente se pensa em João – ele não tinha uma casa própria, no máximo usava a casa de parentes. Com a expressão “eis tà Idia“, se entende uma realidade muito mais ampla, maior, misteriosa: uma profunda comunhão de propósitos, espiritual e apostólica. Por isso, não nos surpreendemos ao ver a Mãe de Jesus no cenáculo com Apóstolos e discípulos (cf. At 1,1-2).
As coisas próprias
A expressão “as coisas próprias” nos permite intuir como as coisas nas quais o discípulo acolheu a Mãe de Jesus indicam os diversos dons que o discípulo recebeu do amor do Senhor Jesus e que se tornaram, portanto, “suas coisas próprias“, ou seja, sua herança espiritual. Entre esses dons está também Maria de Nazaré, mãe, testemunha e serva do Senhor. O sentido dessa expressão icônica pode ser identificado como uma acolhida da Mãe do Senhor entre as coisas mais pessoais que possuímos, porque o relacionamento com ela, a discípula do Reino, é constitutivo da personalidade de cada discípulo.
Maria é um dos muitos bens morais-espirituais mais preciosos que o discípulo herda de Jesus, seu mestre e Senhor (cf. Jo 13,13). Até aquele momento, ela era apenas a mãe de Jesus, mas a partir daquela Hora, ou seja, desde o mistério pascal, ela se torna também a mãe do discípulo, que representa todos os discípulos. À beira da morte, prestes a passar deste mundo para o Pai (cf. Jo 13,1), Jesus quis mostrar a plenitude do seu amor despojando-se de tudo e, assim, doando o único bem que lhe restava, sua Mãe.
Papa Wojtyla comentou em uma audiência geral em 23 de novembro de 1988: «na sua Paixão, Jesus se viu despojado de tudo. No Calvário, a única coisa que lhe resta é a Mãe; e com um gesto de supremo desapego, ele também a doa ao mundo inteiro, antes de cumprir a sua missão com o sacrifício da vida. Jesus está consciente de que chegou o momento da sua consumação, como diz o evangelista: ‘Depois disso, sabendo que tudo estava consumado…’ (Jo 19,28). E ele quer que entre as coisas ‘consumadas’ esteja também esse dom da Mãe para a Igreja e para o mundo».
Maternidade eclesial de Maria
A experiência materna de Maria tornou-se vasta e intensa além de qualquer medida na Cruz: além da maternidade em relação a Cristo, acrescentou-se a maternidade em relação à Igreja. É aí, desde então, que, à semelhança das jarras em Caná (cf. Jo 2,7), o seu ventre foi preenchido pela vontade do mesmo Senhor que transformou a água em vinho, até a borda. Portanto, o discípulo acolhe a Mãe de Cristo e a reconhece como sua mãe, em obediência à vontade do Senhor Jesus. Nesse sentido, acolher Maria não é uma escolha opcional para aqueles que se sentem particularmente devotos, mas é uma obediência a Cristo Jesus, lembrando o presente pascal que Jesus Cristo deu a cada um de seus discípulos.
A doutrina joânica sobre a acolhida a ser dada à Mãe de Jesus, no âmbito da fé, é de suma importância tanto para a testemunha pessoal de cada fiel quanto para o diálogo ecumênico entre as confissões cristãs. A pessoa de Cristo permanece o centro de nossa fé: ‘Eu sou a Porta‘ (Jo 10,9). No entanto, para acolher Cristo com pleno consentimento (cf. Jo 1,12), devemos também receber todos os dons – incluindo Maria! – com os quais Ele quis enriquecer Sua Igreja e estabelecer entre eles a correta e fecunda harmonia já delineada também pelos escritos joaninos.
Tudo isso significa adotar uma perspectiva puramente espiritual e desincorporada, ou algo mais?
Não pode ser reduzido a um princípio simplesmente enunciado, impregnado por algum sentimento passageiro. Acolher Maria em nossa vida é tê-la como modelo de vida, além de refúgio nas dificuldades e incertezas diárias, significa compreender as linhas de força de sua vida e fazê-las passar para a nossa. Na escola de Jesus, Maria cresceu como discípula, para a perfeição de seu aprendizado, Maria se tornou mestra, ou, se preferirmos, guia dos cristãos.
A metáfora do guia, por sua vez, também evoca a da estrela, que é muito significativa e bela para resumir as múltiplas luzes que Maria, iluminada por Cristo, o sol que não se põe, irradia sobre o território dos valores. A Mãe de Jesus é um presente do Senhor, oferecido a todo fiel: acolhê-la em nossa vida e confiar nela, venerá-la com a liturgia da Igreja e com a piedade genuína dos fiéis, significa repetir o gesto do discípulo amado e fazê-lo por uma necessidade interior, uma necessidade que nasce da obediência ao comando de Cristo.
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