Nossa Senhora das Dores: memória litúrgica

A memória litúrgica da Bem-aventurada Virgem Maria das Dores não nos permite encerrar no mundo privado e devocional um aspecto fundamental da experiência da Virgem: aquela que na hora do nascimento de Cristo apresentou e deu o seu Filho ao Pai, na Hora da Cruz é apresentada e entregue ao discípulo amado como mãe, imagem da Mãe Igreja.

O Calendário Litúrgico Geral atribuiu este memorial ao dia 15 de setembro, dia imediatamente seguinte à festa da Exaltação da Cruz. Esta localização sublinha a inseparabilidade entre a cruz do Filho e a dor da Mãe, confirmando o que Paulo VI já havia indicado na Marialis Cultus n. 7: «a memória da Virgem das Dores é uma ocasião propícia para reviver um momento decisivo da história da salvação e para venerar a Mãe associada à Paixão do Filho e próxima a Ele erguido na cruz».

A proximidade das duas datas (14 e 15 de Setembro) coloca a memória mariana na devida luz e enquadra-a no quadro fortemente cristológico de exaltação-glorificação da dor e do sacrifício de Cristo. Então Nossa Senhora das Dores é celebrada não em si mesma, mas com Cristo e em Cristo, na luz luminosa e gloriosa que emana do mistério da cruz. A liturgia valoriza o melhor da tradição, libertando a memória – à luz das indicações da constituição conciliar Lumen gentium (n. 67) – daquilo que herdou do passado: 

«Aos teólogos e pregadores da palavra de Deus, exorta-os instantemente a evitarem com cuidado, tanto um falso exagero como uma demasiada estreiteza na consideração da dignidade singular da Mãe de Deus. Estudando, sob a orientação do magistério, a Sagrada Escritura, os santos Padres e Doutores, e as liturgias das Igrejas, expliquem como convém as funções e os privilégios da Santíssima Virgem, os quais dizem todos respeito a Cristo, origem de toda a verdade, santidade e piedade. Evitem com cuidado, nas palavras e atitudes, tudo o que possa induzir em erro acerca da autêntica doutrina da Igreja os irmãos separados ou quaisquer outros. E os fiéis lembrem-se de que a verdadeira devoção não consiste numa emoção estéril e passageira, mas nasce da fé, que nos faz reconhecer a grandeza da Mãe de Deus e nos incita a amar filialmente a nossa mãe e a imitar as suas virtudes».

Na atual forma da Missa os textos em relação ao Missal anterior a 1969 são totalmente novos, exceto a antífona de entrada, a passagem do Evangelho e a sequência opcional do Stabat Mater.

A forma revisada abre com a passagem de Lucas 2,34-35 como Antífona de entrada:

Simeão disse a Maria: «Este menino está destinado a causar a queda e o surgimento de muitos em Israel, e a ser um sinal de contradição, de modo que o pensamento de muitos corações será revelado. Quanto a ti, uma espada atravessará a sua alma».

Delineia-se imediatamente a figura de Cristo, pedra rejeitada pelos construtores que se tornou a pedra angular (cf. Sal 117,22), e o papel de Maria na obra da salvação. As misteriosas palavras de Simeão, dirigidas à Mãe de Deus no início da celebração, convidam a assembleia a envolver-se na Palavra que será ouvida e a renovar a escolha por Cristo, seguindo o exemplo da Virgem Mãe.

A primeira leitura é tirada da Carta aos Hebreus 5,7-9:

[Cristo], nos dias de sua vida terrena, ofereceu orações e súplicas, com grande clamor e lágrimas, a Deus que poderia salvá-lo da morte e, por seu total abandono a ele, foi crucificado. Embora fosse o Filho, aprendeu a obediência pelo que sofreu e, aperfeiçoado, tornou-se a causa da salvação eterna para todos os que lhe obedecem. O texto pertence à parte central da Carta aos Hebreus, onde fala do compassivo Sumo Sacerdote, Jesus, nos dias da sua vida terrena. Graças à sua humanidade, ele pôde representar os homens e, compartilhando os seus sofrimentos, pôde simpatizar com suas misérias. «Nos dias de sua vida terrena», e especialmente no Getsêmani, «ofereceu orações e súplicas […] a Deus que poderia salvá-lo da morte». A morte não lhe é poupada, mas é vencida com a sua ressurreição na glória (cf. Fl 2,9-11; Hb 2,9). Ele «aprendeu a obediência» por meio de sua total submissão ao Pai Celestial e foi «aperfeiçoado» em seu ofício como sacerdote e vítima. Por esta via dramática, Cristo «foi ouvido». A sua morte torna-se causa de salvação eterna para quem nele acredita, abrindo-se ao esplendor jubiloso da ressurreição.

A utilização desta passagem significa que também Maria, até agora apenas a Mãe de Jesus, associada a Cristo na Paixão com a sua dor, torna-se a Mãe de todos aqueles que acreditam, de toda a humanidade chamada à salvação. Também os fiéis, à imitação de Maria, são exortados a praticar a obediência do sofrimento e o empenho constante e quotidiano para se tornarem «perfeitos» e, portanto, participar na plenitude da glória de Cristo ressuscitado.

«Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito», diz Jesus pouco antes de morrer, citando o v. 6 do Salmo 30, proposto como salmo responsorial. De acordo com Lucas 23,46 Jesus extrai deste salmo a oração do abandono confiante na cruz, uma invocação atribuível também a Maria de pé junto à cruz e à assembleia reunida para a memória da Virgem. Com o refrão: «Ajuda-me na minha dor, Senhor», o salmo resume o pranto dos sofredores, marginalizados, oprimidos, perseguidos, excluídos, um grito que Cristo faz seu na Paixão e que encontra espaço no coração de sua mãe. Com referência a outros textos da Escritura, o salmo torna-se fonte de luz e esperança para todos.

A leitura do Evangelho é a clássica perícope de Jo 19,25-27. O uso frequente da passagem revela o potencial da palavra de Deus que, embora sempre imutável, se manifesta continuamente ao homem e à mulher em suas infinitas riquezas, permitindo assim que a Igreja penetre cada vez mais no mistério e experimente seu significado. A passagem faz-nos contemplar Maria junto à Cruz no momento em que Jesus moribundo lhe confia no discípulo amado todos aqueles por quem derrama o seu sangue. A entrega é então reafirmada com as palavras dirigidas ao discípulo: «Eis a tua mãe». Maria aparece como a nova Eva, a mãe dos vivos e a imagem da Igreja, ao lado do novo Adão adormecido no sono fecundo da morte. As palavras do Evangelho revelam que Cristo, o primogênito de muitos irmãos, e o discípulo amado têm a mesma Mãe: a dor de Maria sob a cruz é o sofrimento materno, gerador da vida.

Os três textos eucológicos [textos das orações da Santa Missa] combinam o mistério de Nossa Senhora das Dores com a vocação da Igreja para se unir ao mistério pascal de Cristo. 

Reconhecendo que, por vontade do Pai, Maria está próxima da Cruz do Filho, na Oração coleta pedimos a Deus que a Igreja, «associada a Maria na paixão de Cristo, participe da glória da ressurreição». 

Na Oração sobre as oferendas, a Igreja, apresentando as oferendas no altar, entrega-se também ao Deus misericordioso, unido à dulcíssima Mãe dada-recebida sob a cruz de Cristo.

Finalmente, a Oração pós comunhão, referindo-se a Colossenses 1,24, recorda o vínculo que une a Igreja a Maria: a participação nos sacramentos salvíficos em memória da Virgem das Dores obriga os fiéis a assemelhar-se Àquela que atuou na redenção. Por isso, imploramos a Deus ajuda, encorajamento e apoio à Igreja, para que em cada um de seus membros se complete o que falta à paixão de Cristo, seu Filho.

Related Articles

Crise Sacerdotal é crise mariana?

A crise sacerdotal nos nossos dias não se refere apenas ao celibato, mas à natureza e imagem do sacerdócio. É uma crise de identidade! Pensemos por momentos que hoje um sacerdócio meramente religioso e sacramental se confunde com ação política. 

O sacerdócio é uma função de prazo fixo e de horário determinado ou o padre é realmente o profissional em tempo integral apaixonado?

 O que é específico do sacerdote? Que meios concretos devem ser usados ​​para que a atividade sacramental seja expressão de uma fé que abranja toda a vida pessoal e social, e não um ritual externo?

Responses

Open chat
Necessita de ajuda?
Ave Maria,
como a poderei ajudar?