“ET INCARNATUS EST DE SPIRITU SANCTO EX MARIA VIRGINE…” (J. Ratzinger [1995])

Introdução

A profissão de fé nicena, como todas as grandes profissões de fé da Igreja antiga, é em sua estrutura básica uma confissão do Deus trino. O seu conteúdo essencial é dizer “sim” ao Deus vivo enquanto Nosso Senhor, de quem vem a nossa vida e para quem ela volta. É uma confissão de Deus, mas o que significa chamar Deus, de Deus vivo? Significa que Deus não é uma conclusão do nosso pensamento, que agora, com a consciência do nosso conhecimento e compreensão, colocaremos perante os outros. Se fosse apenas uma questão disso, Deus continuaria sendo um pensamento dos homens, e toda tentativa de recorrer a ele poderia ser uma busca cheia de esperança e expectativa, mas ainda assim levaria à indefinição. 

O fato de falarmos do Deus vivo significa: Deus se mostra a nós, olha desde a eternidade até o tempo e se relaciona conosco. Não podemos defini-lo de acordo com nossos gostos. Ele mesmo se definiu e agora está, como nosso Senhor, diante de nós, acima de nós e em nosso meio. Esta auto-revelação de Deus, em virtude da qual Ele não é fruto da nossa reflexão, mas nosso Senhor, constitui justamente o ponto central da confissão de fé. O reconhecimento da história de Deus no seio da história humana não é algo que complique a simplicidade da confissão de Deus, mas é a sua condição interior.

Portanto, o centro de todas as nossas confissões de fé é o “sim” a Jesus Cristo: «Ele se encarnou pelo poder do Espírito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem». A esta frase nos ajoelhamos, porque o céu, o véu do esconderijo de Deus é rasgado e o mistério nos toca imediatamente. O Deus distante torna-se nosso Deus, torna-se Emanuel, «Deus conosco». 

Os grandes mestres da música sacra de uma forma sempre nova, além de tudo que pode ser expresso em palavras, deram a esta frase aquela ressonância através da qual o indizível toca nossos ouvidos e nossos corações. Tais composições são uma “exegese” do mistério, que penetra mais fundo do que todas as nossas interpretações racionais. Mas como é o Verbo, que se fez carne, também nós temos que tentar de novo e de novo traduzir esta Palavra original criativa, que “estava com Deus” e “é Deus”, em nossas palavras humanas, a fim de ouvir a Palavra nas palavras.

1. Gramática e conteúdo na frase da profissão de fé

Se agora examinarmos a frase antes de tudo segundo a sua estrutura gramatical, veremos que ela inclui quatro sujeitos. O Espírito Santo e a Virgem Maria são expressamente mencionados. Mas também existe o sujeito “Ele” de “Ele se tornou carne“. Este Ele é primeiro chamado por vários nomes: Cristo, o Filho unigênito de Deus, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,  consubstancial ao Pai. Assim, neste Ele – inseparável dele – um outro Eu está incluído: o Pai, com quem Ele é da mesma substância, para que Ele possa ser chamado Deus de Deus. Isso significa: o primeiro e verdadeiro sujeito desta frase é – como era de se esperar depois do que foi dito antes – Deus, mas Deus na trindade dos sujeitos, que no entanto são um só: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. 

No entanto, o drama da frase reside no fato de que ela não formula uma afirmação sobre o ser eterno de Deus, mas uma afirmação de ação, que, examinando mais de perto, revela-se até como uma declaração de paixão – como um passivo. A esta afirmação de ação, da qual participam as três pessoas divinas – cada uma a seu modo – pertence a expressão ex Maria virgine, aliás, dela depende o drama do todo. Com efeito, sem Maria, a entrada de Deus na história não chegaria ao fim; o que importa na confissão de fé não seria alcançado: que Deus é um Deus conosco e não apenas um Deus em si e para si. Assim, a mulher, que se qualificou como humilde, isto é, como mulher anônima (Lc 1,48), é colocada no centro da confissão no Deus vivo, que não pode ser pensado sem ela. 

Ela pertence inalienavelmente à nossa fé no Deus vivo, no Deus que age. A Palavra se torna carne, o significado eterno e fundamental do mundo entra nela. Ele não apenas olha de fora, mas ele mesmo se torna um sujeito ativo nela. Para que isso acontecesse, era necessário que a Virgem colocasse à disposição toda a sua pessoa, tornando-se o lugar da habitação de Deus no mundo. A incarnação precisava de aceitação. 

Somente assim a unidade do Logos e da carne pode ser verdadeiramente verificada. “Aquele que te criou sem ti não quis te redimir sem ti”, disse Agostinho a esse respeito. O mundo ao qual o Filho vem, a “carne” que ele assume, não é um lugar qualquer e uma coisa qualquer: este mundo, esta carne é uma pessoa humana, um coração aberto. A Carta aos Hebreus, a partir do Salmo 40, interpretou o processo da Encarnação como um verdadeiro diálogo intradivino: “Tu me preparaste um corpo”, diz o Filho ao Pai. Mas esta preparação do corpo realiza-se na medida em que também Maria afirma: «Sacrifício e oferta não quiseste, corpo me preparaste… Eis-me aqui, venho para fazer a tua vontade» (Heb 10,5; Sal 40,6-8). O corpo é preparado para o Filho no momento em que Maria se entrega totalmente à vontade do Pai e assim põe o seu corpo à disposição como tenda do Espírito Santo.

2. O fundo bíblico da frase

Para compreender plenamente a frase central da confissão de fé, devemos ir além do Credo até à sua fonte: as Sagradas Escrituras. Olhando mais de perto, a profissão de fé revela-se neste ponto como síntese dos três grandes testemunhos bíblicos da encarnação do Filho: Mt 1,18-25; Lucas 1,26-38; Jo 1,13. Procuremos, portanto – sem entrar em uma interpretação minuciosa desses textos – captar algo de sua contribuição específica para a compreensão da Encarnação de Deus.

2.1. Mt 1,18-25

Mateus escreve o seu Evangelho para o meio judaico e judaico-cristão. Ele tem, portanto, a preocupação de evidenciar a continuidade entre a Antiga e a Nova Aliança. O Antigo Testamento tende a Jesus, as promessas se cumprem nele. O vínculo interior de expectativa e realização torna-se ao mesmo tempo uma demonstração de que Deus realmente age aqui e que Jesus é o salvador do mundo enviado por Deus. Deste ponto de vista deriva sobretudo o fato que Mateus desenvolve a história da infância a partir de São José: para mostrar que Jesus é o filho de Davi, o herdeiro prometido, que dá continuidade à dinastia davídica e a transforma na realeza de Deus sobre o mundo. A árvore genealógica davídica conduz a José: o anjo se dirige a ele em sonho como filho de Davi (Mt 1,20). Portanto, José torna-se aquele que nomeia Jesus: «A adoção como filho ocorre com a imposição do nome» (J. Gnilka, Das Matthäusevangelium, I, Freiburg 1986, 19). 

Precisamente porque Mateus quer mostrar a correlação entre promessa e cumprimento, a Virgem Maria surge ao lado da figura de José. Ainda não tinha sido revelada  e permanecia incompreensível a promessa que Deus havia feito através do profeta Isaías ao duvidoso rei Acaz, que não queria pedir a Deus nenhum sinal quando os exércitos inimigos estavam cada vez mais próximos. «O Senhor vos dará um sinal: eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele o chamará pelo nome de Emanuel (Deus conosco)» (Is 7,14). Ninguém é capaz de dizer o que esse sinal significava na hora histórica do rei Acaz, se esse foi dado em que consistia. A promessa vai muito além dessa hora. Continua a brilhar na história de Israel como uma estrela de esperança, que dirige o olhar para o futuro, para o ainda desconhecido. Para Mateus, com o nascimento de Jesus da Virgem Maria, o véu é levantado: o sinal já está dado. A Virgem que dá à luz pelo poder do Espírito Santo é ela mesma o sinal. Agora, um novo título está ligado a esta segunda linha profética, que dá ao nome de Jesus todo o seu significado e profundidade. Se, a partir da promessa de Isaías, o menino se chama Emanuel, ao mesmo tempo se amplia o quadro da promessa davídica.

O reino desta criança vai além do que se poderia esperar da promessa de Davi: é o reino de Deus; participa da universalidade do senhorio de Deus, porque nela Deus entrou na história do mundo. O anúncio, que se manifesta na história da concepção e nascimento de Jesus, é retomado apenas nos últimos versículos do Evangelho. Durante a sua vida terrena, Jesus sente-se intimamente ligado à casa de Israel, ainda não enviado aos povos do mundo. Mas depois da sua morte na cruz, como ressuscitado, proclama: «Fazei discípulos de todas as nações… eis que estou convosco todos os dias até ao fim dos tempos» (Mt 28,19). Aqui ele se mostra como o Deus-conosco, cujo novo reino inclui todos os povos. Em consonância com isso, Mateus, no relato da concepção de Jesus, modifica a palavra de Isaías em um ponto. Ele não diz mais: Ela (a virgem) o chamará de Emanuel, mas: eles o chamarão de Emanuel, Deus conosco. Este “eles” anuncia a futura comunidade dos fiéis, a Igreja, que invocará Jesus com este nome. Na narração de Mateus tudo se orienta para Cristo, porque tudo se orienta para Deus, por isso a profissão de fé o compreendeu com razão e o transmitiu à Igreja. 

Visto que Deus agora está conosco, os portadores humanos da promessa também são de importância essencial: José e Maria. José representa a fidelidade de Deus para com Israel, Maria é a esperança da humanidade. José é pai segundo a lei, Maria é mãe com o seu corpo: graças a ela, Deus tornou-se verdadeiramente um de nós.

2.2. Lc 1,26-38

Vejamos agora a apresentação que Lucas faz da condição e do nascimento de Jesus, não para fazer uma exegese deste texto denso, mas para captar a sua particular contribuição para a profissão de fé. Limito-me à passagem do anúncio do nascimento de Jesus pelo Arcanjo Gabriel (Lc 1,26-38). Lucas deixa transparecer o mistério trinitário nas palavras do anjo e dá assim ao acontecimento aquele centro teológico ao qual se refere toda a história da salvação, também na profissão de fé. A criança que vai nascer será chamada Filho do Altíssimo, Filho de Deus. O Espírito Santo como força do Altíssimo realizará misteriosamente a sua concepção: assim falamos do Filho, e indiretamente do Pai e do Espírito Santo. 

Para a descida do Espírito Santo sobre Maria, Lucas usa aqui a palavra “cobrir com a sombra” (v. 35). Assim, ele alude à história veterotestamentária da nuvem santa, que, pairando sobre a tenda da reunião, indicava a presença de Deus. Assim, Maria é caracterizada como a nova tenda santa, a área viva da aliança. O seu sim torna-se lugar de encontro, no qual Deus acolhe no mundo. Deus, que não mora em casas de pedra, vive neste sim doado de corpo e alma. Ele, a quem o mundo não pode conter, passa a residir em uma pessoa humana. Lucas faz ressoar várias vezes este tema do novo templo, da verdadeira arca da aliança, sobretudo na saudação do anjo a Maria: Alegra-te, cheia de graça. O Senhor está contigo (1,28). Agora é quase unanimemente reconhecido que esta palavra do anjo transmitida por Lucas retoma a promessa de Sofonias 3,14, que se dirige à filha de Sião e lhe anuncia a morada de Deus no meio dela. Com esta saudação, Maria é apresentada como: a Filha de Sião em pessoa e ao mesmo tempo como morada, como tenda santa, sobre a qual repousa a nuvem da presença de Deus. Os Padres da Igreja, retomaram esta ideia, que depois determina também a iconografia paleocristã. São José é indicado, através do bastão florido, como sumo sacerdote, como arquétipo do bispo cristão. Maria, ao contrário, é a Igreja viva. Sobre ela desce o Espírito Santo, que a torna o novo templo de Deus. José, o justo, é apresentado como administrador dos mistérios de Deus, como superintendente e guardião do santuário, que é a esposa e o Logos dentro dela. Assim ele se torna a imagem do bispo, a quem a esposa é confiada; não está à sua disposição, mas sob a sua proteção. Tudo está orientado para o Deus trino, mas precisamente por isso no mistério de Maria e da Igreja o seu “estar com” na história torna-se particularmente evidente e compreensível.

Mais um ponto no relato lucano da Anunciação me parece importante para a nossa questão. Deus requer o “sim” do homem. Ele não o dispõe simplesmente com um ato de seu poder. Ele criou para si um interlocutor livre na criatura humana, e agora precisa da liberdade dessa criatura, para que o seu reino, que não se baseia em um poder externo, mas na liberdade, possa se tornar realidade. Bernardo de Claraval em um de seus sermões representou dramaticamente essa expectativa de Deus e da humanidade:

«O anjo espera a sua resposta, porque agora é hora de voltar para aquele que o enviou… Ó Senhora, dê essa resposta, que a terra , que o submundo, de fato, que os céus esperam. Assim como o Rei e Senhor de todos ansiava por ver sua beleza, ele anseia por sua resposta afirmativa… Por que você hesita? Por que temer?… Eis que bate à tua porta aquele que é esperado por todos. Ai, se ele, por tua hesitação, passar… Levanta-te, corre, abre! Levanta-te com fé, apressa-te com a tua oferta, abre com a tua adesão!» (Bernardo de Claraval , In laudibus Virginis Matris, Hom, IV, 8). 


Sem esta livre adesão de Maria Deus não pode fazer-se homem. Certo, este sim de Maria é totalmente graça. O dogma da imaculada conceição de Maria, na verdade, tem apenas este significado específico, para mostrar que não é um ser humano que põe em movimento a redenção por seu próprio poder, mas seu sim totalmente contido, desde o início e anteriormente, no amor divino, que já o envolve, antes mesmo de ser gerado. Tudo é graça. Mas a graça não tira a liberdade, pelo contrário, ela a cria. Todo o mistério da redenção está presente nesta narração e se resume na figura da Virgem Maria: «Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1,38).

2.3. Prólogo do Evangelho de João

Passemos agora ao Prólogo do Evangelho de João, em cujas palavras se baseia a Profissão de Fé. «O Verbo se fez carne e armou a sua tenda entre nós». O Logos torna-se carne: estamos tão habituados a esta palavra que já não nos impressiona a inaudita síntese divina do que aparentemente era absolutamente separado, uma síntese em que os Padres da Igreja se identificaram passo a passo. Aqui estava e se encontra a verdadeira novidade cristã, que parecia sem sentido e impensável ao espírito grego. O que aqui se diz não deriva de uma determinada cultura, a semítica por exemplo ou a grega, como hoje sem muita reflexão se afirma continuamente. É algo contra todas as formas culturais que conhecemos. Era tão incorreto para os judeus quanto, por razões totalmente diferentes, para os gregos ou os indianos e também para o espírito moderno, para o qual esta síntese do mundo fenomenal e numinoso parece completamente irreal, e objeto de renovada contestação com toda a autoconsciência da racionalidade moderna. O que é dito aqui é novo, porque vem de Deus e só poderia ser feito por Deus. Para todos os períodos da história e para todas as culturas é algo absolutamente novo e desconhecido, ao qual podemos aceder na fé e só na fé. Abre horizontes totalmente novos de pensar e viver.
João, no entanto, tem uma acentuação muito particular em mente. A frase do Logos que se torna sarx (carne) é um prelúdio para o sexto capítulo do Evangelho, que em sua totalidade desenvolve este meio versículo (R. Schnackenburg, Das Johannesevangelium, I, 243).

Ali Jesus diz aos judeus e ao mundo: o pão, que eu darei (isto é, o Logos, que é o verdadeiro alimento do homem), é a minha carne para a vida do mundo (6,51). A palavra “carne” já exprime, ao mesmo tempo, o dom até ao sacrifício, o mistério da cruz e o mistério do sacramento pascal que dela deriva. A Palavra não se torna carne de alguma forma, para ter uma nova condição de existência. A dinâmica do sacrifício está incluída na encarnação. Subjaz novamente a palavra do salmo: um corpo me preparaste… (Heb 10,5; Sal 40). Portanto, nesta pequena frase, todo o evangelho está contido; sente-se o chamado à palavra dos Padres da Igreja: o Logos se condensou, tornou-se pequeno. Isso vale de duas maneiras: o Logos infinito tornou-se pequeno, uma criança; mas também a palavra imensurável, toda a plenitude da Sagrada Escritura se contraiu nesta única frase, na qual a Lei e os Profetas são sintetizados (H. U. von Balthasar, Das Wort verdichtet sich, in Communio 6 (1977), 397-400). Ser e história, culto e ethos se reúnem aqui no centro cristológico e se fazem presentes sem atalhos.

A segunda indicação que está perto do meu coração pode ser breve. João fala da habitação de Deus como consequência e propósito da encarnação. Para isso ele usa a palavra da tenda e se refere novamente à tenda do encontro do Antigo Testamento, à teologia do templo, que encontra o seu cumprimento no Logos feito carne. Na palavra grega usada para a tenda – skené – também ressoa a palavra hebraica shekînah, ou seja, a designação para a nuvem sagrada do judaísmo primitivo, que então se tornou o nome de Deus e indicava «a presença graciosa de Deus, junto à qual os judeus se reuniam para orar e estudar a lei» (R. Schnackenburg, Das Johannesevangelium, I, 245). Jesus é a verdadeira, shekînah por meio da qual Deus está em nosso meio, se estivermos reunidos em seu nome.

Finalmente, temos que lançar um olhar mais uma vez no versículo 13. Aos que o acolheram, ele – o Logos – deu o poder de se tornarem filhos de Deus: «a todos os que crêem em seu nome, que não por sangue ou por vontade de carne, nem da vontade do homem, mas de Deus nasceram». Para este versículo existem duas tradições textuais diferentes, e hoje não é mais possível discernir qual é o original. Ambas parecem ser praticamente da mesma antiguidade e com a mesma autoridade. Portanto, existe uma versão no singular: «que não foi gerado pelo sangue, nem pela vontade da carne, nem pela vontade do homem, mas de Deus». Porém, ao lado dela está a versão, que é usada pela tradição latina, com o plural: “que… por Deus foram gerados”. Esta forma dual da tradição é compreensível, porque o versículo em qualquer caso se refere a ambos os assuntos. Nesse sentido, devemos, na verdade, sempre ler ambas as tradições textuais juntas, porque somente juntas o significado completo do texto emerge. Se tomarmos como base a versão plural usual, então falamos dos batizados, os quais participam do novo nascimento divino, a partir do Logos. Mas o mistério do nascimento virginal de Jesus – a origem de nosso nascimento divino – brilha tão claramente que apenas um preconceito pode negar essa correlação. Ainda que considerássemos a versão singular como aquela originária, permanece evidente a relação com «todos aqueles que o acolheram». 

Fica claro que a concepção de Jesus a partir de Deus, a sua nova geração, é orientada para isso, para nos assumir, para nos dar uma nova geração. Assim como o versículo 14, com a palavra da encarnação do Logos, prenuncia o capítulo eucarístico do Evangelho, também aqui é evidente a antecipação da conversa com Nicodemos no terceiro capítulo. Cristo diz a Nicodemos que a geração da carne não é suficiente para entrar no reino de Deus, é necessária uma nova geração do alto, uma regeneração pela água e pelo Espírito (3,5). Cristo, concebido pela Virgem por obra do Espírito Santo, é o início de uma nova humanidade, de uma nova forma de existência. Tornar-se cristão significa ser acolhido neste novo começo. Tornar-se cristão é mais do que buscar novas ideias, um novo ethos, uma nova comunidade. A transformação que aqui ocorre tem a natureza radical de um verdadeiro renascimento, de uma nova criação. Assim, a Virgem-Mãe se encontra novamente no centro do acontecimento redentor. Garante com todo o seu ser a novidade que Deus realizou. Somente se a sua história for verdadeira e estiver no início, é válido o que Paulo diz: «Portanto, se alguém está em Cristo, é uma nova criatura…» (2 Cor 5,17).


Conclusão: as pegadas de Deus


Deus não está preso às pedras, mas está ligado a pessoas vivas. O sim de Maria abre-lhe o espaço onde pode armar a sua tenda. Ela mesma se torna a tenda e o início da santa Igreja, que por sua vez é uma antecipação da nova Jerusalém, na qual não mais existe templo, porque Deus habita ali. A fé em Cristo, que confessamos no Credo dos Baptizados, é portanto uma espiritualização e uma purificação de tudo o que a história das religiões disse e esperou sobre a morada de Deus no mundo. Mas é, ao mesmo tempo, também uma encarnação e concretização que vai além de qualquer expectativa quanto ao estar de Deus com os homens. 

«Deus está na carne»: este vínculo indissolúvel de Deus com a sua criatura constitui o centro da fé cristã. Se for esse o caso, é compreensível que os cristãos desde o início considerassem sagrados os lugares onde esse evento ocorreu. Tornaram-se a garantia permanente da entrada de Deus no mundo. Nazaré, Belém e Jerusalém tornaram-se lugares onde de certa forma se podem ver as pegadas do Redentor, onde o mistério da encarnação de Deus nos toca de perto. 

No que diz respeito à narração da anunciação, o Protoevangelho de Tiago – que data do século II e, apesar de seus muitos elementos lendários, pode ter preservado também registros reais – dividiu este evento em dois lugares. Maria

«pegou no jarro e saiu para pegar água. E eis que uma voz disse: ‘Ave, cheia de graça, o Senhor seja convosco, bendita entre as mulheres’. Ela virou à esquerda e à direita para ver de onde vinha essa voz. E ela se turbou, entrou em casa, largou o jarro, pegou a purpura, sentou-se na cadeira e estendeu-a. E eis que um anjo do Senhor apareceu de repente diante dela e disse: ‘Não tenhas medo, Maria, de fato você encontrou o favor do Todo-Poderoso e você vai conceber de sua palavra’» (11,1ss). 

A esta dupla tradição correspondem os dois santuários, o santuário oriental da fonte e a basílica católica, construída em torno da gruta da Anunciação. Ambos têm um significado profundo. Origenes chamou a atenção para o fato de que o motivo do poço informa sobre si toda a história dos Padres do Antigo Testamento.
 

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